O cardeal italiano Angelo Becciu, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e uma das mais altas figuras da hierarquia do Vaticano, foi demitido do cargo e dispensado de todos os direitos enquanto cardeal, anunciou esta quinta-feira a Santa Sé sem acrescentar qualquer detalhe sobre os motivos da saída.

“Hoje, quinta-feira, 24 de setembro, o Santo Padre aceitou a resignação do cargo de Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e dos direitos associados ao cardinalato apresentada por sua eminência o cardeal Giovanni Angelo Becciu”, lê-se no breve comunicado divulgado esta tarde pelo gabinete de imprensa da Santa Sé.

De acordo com a agenda do próprio cardeal, parece improvável que a decisão do Papa Francisco tenha sido tomada com antecedência: Angelo Becciu deveria presidir, no dia 10 de outubro, à beatificação do jovem italiano Carlo Acutis, na cidade de Assis. Segundo o jornal italiano La Repubblica, a decisão terá sido comunicada pelo próprio Papa a Angelo Becciu pouco tempo antes da divulgação do comunicado.

A dispensa de um cardeal dos direitos associados ao cardinalato é uma decisão raríssima tomada pelo Papa em situações absolutamente excecionais. O último cardeal que tinha sido dispensado dos direitos, embora mantendo o título, foi o britânico Keith O’Brien, na sequência de acusações de assédio sexual, em 2015. Mais recentemente, o cardeal norte-americano Theodore McCarrick foi retirado não só do cardinalato, mas do sacerdócio, por ter sido declarado culpado de abuso sexual de menores.

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Embora a Santa Sé não tenha divulgado oficialmente as razões que levaram à saída do cardeal, o que é certo é que Angelo Becciu tinha o seu nome envolvido num dos mais recentes escândalos financeiros no Vaticano: o polémico investimento de 200 milhões de dólares (mais de 175 milhões de euros) da Igreja Católica na compra de um edifício milionário em Londres através de um fundo liderado pelo empresário italiano Raffaele Mincione, em 2014.

“Coisas que não parecem limpas.” Como um prédio em Londres obrigou o Papa a reformar as finanças do Vaticano

Angelo Becciu foi nomeado cardeal em 2018, ano em que o Papa Francisco o promoveu a prefeito da Congregação para as Causas dos Santos — o organismo da cúpula da Santa Sé responsável pelos processos de canonização. Antes, o italiano tinha trabalhado durante sete anos, entre 2011 e 2018, como Sostituto da Secretaria de Estado (ou seja, a segunda figura da hierarquia da Secretaria de Estado do Vaticano, a seguir ao próprio secretário de Estado).

Durante o período em que esteve na Secretaria de Estado, Becciu esteve diretamente envolvido em diversos escândalos financeiros, nomeadamente o polémico investimento de Londres, diz a Catholic News Agency. Os 175 milhões de euros foram investidos no fundo liderado por Mincione com o objetivo de colocar a render parte do dinheiro angariado pelo Vaticano através do Óbolo de São Pedro — um sistema de angariação de fundos no qual os fiéis oferecem dinheiro diretamente ao Papa para o sustento da Igreja e para o apoio aos mais pobres e necessitados.

O investimento foi feito através de empresas offshore e deu ao Vaticano 45% de um projeto imobiliário de luxo que estava a ser construído num bairro privilegiado da capital britânica. O projeto prometia lucro ao Vaticano (supostamente, para fazer crescer o dinheiro disponível para obras de caridade), mas o abalo no mercado imobiliário provocado pela decisão do Brexit em 2016 deixou a Santa Sé na iminência de perder parte do investimento. Perante essa preocupação, a Secretaria de Estado do Vaticano — da qual Becciu era o número dois — deu ordem para que o prédio fosse adquirido na totalidade em nome do próprio Vaticano.

A braços com um edifício de luxo e sem saber o que lhe fazer, o Vaticano envolveu-se, no final de 2018, num esquema com o investidor italiano Gianluigi Torzi, que apresentou à cúpula da Igreja Católica uma solução: transferir o prédio para uma empresa offshore em seu nome, através da qual Torzi faria negócios imobiliários em nome do Vaticano. As verdadeiras motivações de Torzi foram um mistério que levantou suspeitas sobre a atuação das altas patentes da Santa Sé, nomeadamente sobre o padre Alberto Perlasca, responsável pelo departamento da Secretaria de Estado que gere os investimentos, mas também sobre o próprio secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, e sobre o seu adjunto, o arcebispo Edgar Peña Parra, que autorizaram as transferências bancárias.

Segundo a CNA, o Sostituto Angelo Becciu teria, pessoalmente, tentado esconder na documentação financeira do Vaticano que os investimentos feitos em 2014 para a compra do prédio tinham tido origem em créditos do banco suíço BSI, mas a manobra — que tinha sido proibida pelo Papa Francisco através das normas aprovadas em 2014 para promover a transparência financeira da Igreja — foi detetada pelo cardeal George Pell, então responsável pelo escrutínio financeiro do Vaticano. A mesma agência acrescenta que, quando Pell exigiu documentos à Secretaria de Estado, Becciu chamou-o para o repreender pela exigência.

O investimento foi um dos maiores, mas não o único escândalo financeiro em que Angelo Becciu esteve envolvido. De acordo com a CNA, foi Becciu quem, em 2016, decidiu unilateralmente, sem autorização do Papa, cancelar uma auditoria externa às contas do Vaticano que tinha sido pedida pela Secretaria para a Economia liderada por Pell. Becciu esteve também envolvido na falência do hospital italiano Istituto Dermopatico dell’Immacolata, em 2013.