Quem o teve como professor é mais ou menos unânime ao descrevê-lo: tratava-se de um homem calmo, que gostava de ouvir os alunos, de os fazer debater ideias e posições em sala de aula. Alguém apaixonado pela profissão e por ensinar, que preferia pôr os alunos a pensar do que sugerir-lhes como pensar.

É assim que Samuel Paty é descrito por antigos alunos. Não poderá continuar a ser descrito, desta maneira ou de qualquer outra, por futuros alunos: na passada sexta-feira foi decapitado por um rapaz de 18 anos, em plena rua. Deixou um filho de apenas cinco anos.

As autoridades francesas acreditam que na origem do crime terá estado uma aula em que Paty mostrou aos seus alunos cartoons satíricos sobre Maomé, para discutir o massacre bárbaro na redação do jornal Charlie Hebdo em 2015.

O crime volta a fazer toda a França confrontar-se com as chagas do terrorismo islâmico e do radicalismo islâmico — depois de casos como o massacre à redação do Charlie Hebdo e, menos de um ano depois, da matança na sala de espectáculos Bataclan.

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“Queria que os estudantes não cedessem ao obscurantismo”

Professor de história e geografia, Samuel Paty tinha 47 anos e lecionava na escola Bois-d’Aulne, na comuna francesa Conflans-Sainte-Honorine, localizada nos subúrbios de Paris.

Segundo o jornal Al Khaleej e a EN 24 News, era tratado pelos alunos como “monsieur Paty”, ou senhor Paty, e vivia “a dez minutos de distância, na pequena cidade de Eragny”. Morava, mais precisamente, no segundo andar de um pequeno prédio, com o seu filho de cinco anos.

Era um homem discreto fora da sala, mas a sua presença iluminava-se em contexto letivo. Um antigo aluno que o teve como professor entre 1999 e 2001, Mickaël Rouyar, recordou-o assim, citado no jornal Al Khaleej: “Organizava debates entre nós. Ninguém podia usar linguagem obscena e toda a gente tinha de trabalhar nos seus argumentos. Na altura falávamos da descriminalização da canábis, de questões de paridade… isto aconteceu no início dos anos 2000, ele foi um percursor”. Ao mesmo meio, um antigo colega recordou-o assim:

Era uma pessoa justa, realmente justa, e convicta de que a educação poderia mudar as pessoas. Queria abrir as mentes dos seus estudantes para que não cedessem ao obscurantismo, mas sempre com bondade e humor”. Outro antigo colega, David Brunet, destacou antes o seu cuidado sempre presente em “educar sem chocar” sensibilidades.

Da vida pessoal de Samuel Paty não se sabe muito: além de se saber que tinha um filho de cinco anos quando foi barbaramente assassinado e que pelo menos fisicamente estivera nos últimos meses separado da mulher (desconhece-se se por motivos de trabalho ou outros), conhece-se o gosto pelo hobbie do ténis, que praticava regularmente, duas a três vezes por semana.

Sabe-se também, através de declarações de alunos recentes, que dizia ter-se mudado para a nova escola porque a mulher tinha sido obrigada a deslocar-se por motivos de trabalho — e conhecem-se também, claro, os traços físicos, o cabelo castanho habitualmente usado curto, a altura diminuta, os óculos que usava sempre e as opções de indumentária que passavam sempre por camisas.

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Uma aula que deu origem a uma fatwa — e à decapitação reivindicada no Twitter

O que se conhece melhor é o seu traço como professor, o apreço pela liberdade de expressão, pelo livre pensamento e pela discussão informada. Descrito como tolerante e apaixonado pela formação de alunos, terá sido precisamente devido a uma aula que terá sido barbaramente assassinado.

Na origem do crime terá estado o momento em que, numa aula dedicada ao tema da liberdade de expressão, o professor de História e Geografia usou cartoons satíricos e humorísticos do jornal Charlie Hebdo para abordar o radicalismo e terrorismo que a intolerância religiosa naquele caso alimentou.

Tê-lo-á feito, contudo, com o cuidado de não chocar a sensibilidade de alguns alunos mais suscetíveis: segundo Rodrigo Arenas, um dos presidentes de uma organização nacional que representa pais de alunos franceses (a FCPE), Samuel Paty avisou os alunos muçulmanos que podiam não ver as imagens dos cartoons caso estas os ofendessem — nomeadamente um cartoon em específico, que ilustrava Maomé, agachado e de costas, com a frase “nasce uma estrela” inscrita nas nádegas.

À agênica de notícias France-Presse, a mãe de um dos alunos, Nordine Chaouadi, corroborou a informação: “Foi uma forma de os preservar. Foi uma ação de pura gentileza porque tinha de mostrar uma imagem do Profeta do Islão e disse simplesmente aos miúdos muçulmanos: saiam, não quero magoar os vossos sentimentos. Foi isso que o meu filho me disse”.

O professor francês faria o exercício todos os anos, segundo antigos alunos, pelo menos de há três anos a esta parte. Desta vez, porém, a aula motivou especial polémica. Alguns pais de alunos decidiram expressar a sua indignação nas redes sociais e Samuel Paty começou a ser descrito como “islamofóbico” e “racista”.

Um pai, em especial, indignou-se com as ofensas religiosas que encontrou na apresentação de um cartoon satírico sobre religião, sabe-se agora pela investigação. Este encarregado de educação ter-se-á deslocado à escola da filha para exigir a demissão do professor e gravou um vídeo em que o descreveu como um “rufia”.

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Mais tarde, voltou a surgir um vídeo com acusações a Samuel Paty nas redes sociais — e de acordo com a investigação e o próprio ministério do Interior francês, o indignado pai da estudante estaria na companhia de um homem próximo do movimento fundamentalista e terrorista Hamas, chamado Abdelhakim Sefrioui. Os dois terão gravado juntos o vídeo em que pronunciavam uma fatwa — um decreto de execução — a Samuel Paty e Sefrioui terá até acompanhado previamente o pai da estudante à escola, quando este foi exigir a demissão do professor.

Depois, vieram as ameaças de morte — por telefone, para a escola — e na sexta-feira passada o assassinato. A autoria do crime foi atribuída a Abdoullakh Abouyezidovitch Anzonov, um refugiado russo de 18 anos de origem chechena. E foi atribuído, em primeira instância, pelo próprio alegado autor do brutal crime, que antes de ser abatido pela polícia francesa recorreu ao Twitter para dizer que tinha executado um dos “cães do inferno” do presidente francês Emmanuel Macron.

Disse ainda Abdoullakh Abouyezidovitch Anzonov que esse “cão do inferno”, Samuel Paty, tinha menorizado o Profeta e publicou uma fotografia da vítima decapitada, segundo o procurador francês Jean-François Ricard, citado pela CNN.

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De acordo com a tese dos investigadores, Abdoullakh Abouyezidovitch terá pedido a várias pessoas no exterior da escola para identificarem e indicarem Samuel Paty, sem explicitar o porquê do pedido e sem evidenciar sinais de agressividade. Depois, seguiu Samuel Paty, aproximou-se dele com uma faca de cozinha de 35 centímetros e esfaqueou-o várias vezes no abdómen, antes de o decapitar. Quando a polícia o encontrou, acabou abatido depois de uma troca de tiros de parte a parte.

A polícia francesa rapidamente desencadeou buscas em Paris para deter não apenas familiares e possíveis cúmplices do crime mas também radicais islâmicos. As buscas serem mais abrangentes visa difundir uma mensagem, segundo o ministro do Interior Gérald Darmanin: “Nem um minuto de trégua será dado aos inimigos da República”.