As notícias animadoras sobre a vacina desenvolvida pela Pfizer, contra o novo coronavírus, tiveram um efeito colateral que pode surpreender quem acompanha mais de longe os “humores” dos mercados financeiros: antes da notícia, que saiu a meio da manhã de segunda-feira, as taxas de juro da dívida portuguesa e espanhola estavam a milímetros de tocarem uma marca histórica: juros zero no prazo de referência dos mercados de dívida soberana (10 anos). Mas, com a injeção de otimismo dada pela notícia da vacina, os investidores saíram das obrigações em direção aos mercados de ações – porque é sempre aí que estão as valorizações em “dias bons”. Consequência: os juros implícitos nas obrigações (que se movem sempre no sentido inverso do seu preço) afastaram-se da marca, que seria histórica, de zero. Mas é possível que a presidente do BCE, Christine Lagarde, dê um novo empurrão às taxas no seu discurso de quarta-feira do Fórum do Banco Central Europeu (que será online, mas que seria em Sintra se não fosse a pandemia).
Há longos meses que países como Portugal e Espanha estão a emitir dívida nos mercados financeiros a juros abaixo de zero, mas apenas em prazos menores do que a referência de 10 anos. Ainda no mês passado, em meados de outubro, o Estado português financiou-se no prazo a oito anos com uma taxa de -0,085% – o que, na prática, significa que os investidores irão no final desse financiamento retirar dele uma remuneração que é negativa. Este é um reflexo do impacto que as políticas de estímulo do Banco Central Europeu (BCE) estão a ter no mercado de dívida soberana – entre compras massivas de dívida no mercado secundário e a definição de taxas dos depósitos negativas (-0,5%, neste momento).
“É impressionante, mas é isso que custa colocar dinheiro num ativo sem risco, hoje em dia”, comenta Carlos Almeida, diretor de investimento do Banco Best, que lembra ao Observador que há poucos dias se atingiu um novo recorde a nível mundial: o equivalente a 17,05 biliões de dólares em ativos de dívida que têm rendibilidade negativa, em todo o mundo. Embora isto comporte preocupações óbvias sobre a sustentabilidade do sistema financeiro, a prazo, para as empresas e para os Estados esta é uma ótima notícia porque “estão a aproveitar para renovar dívida antiga a custos mais baixos e, também, a prazos cada vez mais longos”, afirma o especialista, que admite que nos próximos dias a agência que gere a dívida pública – o IGCP – avance para uma emissão de dívida a 10 anos.
Vacina da Pfizer dá injeção de otimismo em “retoma rápida”. Bolsas disparam para recordes
O ministro das Finanças, João Leão, não escondeu na última negociação orçamental que é “absolutamente crucial manter as taxas de juro da dívida muito baixas“. João Leão considerou que juros a 10 anos próximos dos 0,2% permitem que, “ano após ano, o Estado tenha poupado centenas de milhões de euros em pagamentos de juros da dívida”. Só em 2021 estes níveis irão garantir uma poupança na ordem dos 300 milhões de euros em comparação com o que se gastou em juros da dívida em 2020.
Poucos dias depois – se na frente sanitária as notícias não evoluíram de forma favorável, com a chegada da chamada “segunda vaga” mais cedo do que se previa – existiu pelo menos a garantia dada pela presidente do BCE de que em dezembro serão reforçados os estímulos monetários – que, provavelmente, irão incluir uma intervenção ainda mais agressiva do banco central nos mercados de dívida, que ao comprar títulos de obrigações aos investidores contribui decisivamente para comprimir as taxas de juro.
Preços sobem, juros descem. Como funciona o mercado de dívida?
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Como são calculados os juros das obrigações?
Os títulos de dívida são, tendencialmente, instrumentos que pagam um juro fixo. O que contrasta, por exemplo, com as ações. Isso significa que, no momento da emissão, é definida uma taxa que é paga anual ou semestralmente até que o capital inicial seja reembolsado ao investidor, na chamada maturidade. Chama-se a esse juro periódico o “cupão”, porque em tempos idos os títulos de dívida tinham, no fundo do papel, cupões destacáveis que eram trocados pelos juros. Esse cupão nunca se altera, mas quando os títulos passam a ser negociados no mercado, entre os investidores, a rendibilidade das obrigações varia. Isto porque um investidor pode comprar o título a um valor mais alto ou mais baixo do que aquele que será reembolsado na maturidade. Ou seja, pagar, por exemplo, 98 euros por uma obrigação que, no final do prazo, será reembolsada com 100 euros. É por esta razão que quando o preço de uma obrigação cai, a rendibilidade aumenta, e vice-versa. Porque a diferença face ao valor a reembolsar na maturidade se junta ao cupão fixo e determina a rendibilidade do título, ou seja, o juro.
Se os juros caem, os gastos do Estado com juros diminui imediatamente?
Não. Uma redução dos custos de financiamento numa dada emissão não tem um efeito significativo sobre o montante pago pelo Estado, anualmente, em juros da dívida. E, portanto, sobre o valor de impostos que o Estado cobra. A despesa anual com juros diz respeito à remuneração da totalidade da dívida. São, na sua maioria, títulos de dívida com juros fixados para vários anos, pelo que só quando as taxas descem em várias emissões consecutivas o efeito sobre o custo médio da dívida total começa a fazer-se sentir.
Ora, foram vários os analistas que anteciparam, na manhã desta segunda-feira, que com as notícias cada vez mais preocupantes sobre a propagação do novo coronavírus na Europa subiam, também, as possibilidades de o BCE ser (ainda) mais audaz do que os investidores estavam a contar. Ou seja, de certa forma, más notícias para as economias são boas notícias para os mercados de obrigações (porque fazem antever que os bancos centrais, neste caso o BCE, irão comprar ainda mais títulos de dívida e irão fazer o seu preço subir ainda mais).
“Será esta a semana?”, perguntava na segunda-feira de manhã Frederik Ducrozet, analista da Pictet no Twitter. Seria esta a semana em que os juros a 10 anos de Espanha e Portugal iriam cair para menos de zero?
Is this the week? pic.twitter.com/efiaDneXvt
— Frederik Ducrozet (@fwred) November 9, 2020
Negociando bem abaixo de 0,1%, tanto os juros de Portugal como de Espanha (que têm evoluído de forma muito próxima) pareciam estar muito perto de chegar à marca simbólica dos 0%. Parecia muito provável, caso os juros da dívida continuassem a baixar ao ritmo a que têm baixado nas últimas semanas: como o gráfico de Ducrozet indica, no início de setembro os juros a 10 anos estavam em 0,4%.
Mas o movimento inverteu-se, com a notícia da vacina da Pfizer a trazer uma muito aguardada luz ao fundo do túnel. As taxas da dívida portuguesa afastaram-se de zero e escalaram novamente para perto dos 0,2% – o que implica que os preços das obrigações terminaram o dia de segunda-feira mais baixos do que quando começaram o dia. E porquê? “Alguns participantes do mercado ficaram a questionar-se se, eventualmente, o BCE não precisará de reforçar tanto assim os estímulos, com esta notícia sobre a vacina”, comentam os analistas do holandês Rabobank, em nota enviada esta quarta-feira aos investidores. Novamente: boas notícias para a economia, más notícias para os mercados de dívida.
Isto significa que, ao contrário do que admitia Frederik Ducrozet, já não será esta semana que os juros de Portugal a 10 anos vão para zero ou para valores negativos? Não necessariamente, porque a agenda dos investidores para esta semana inclui, esta quarta e quinta-feira, o encontro anual do BCE que normalmente se realizaria num resort de luxo na zona de Sintra, mas que, este ano, devido à pandemia, será exclusivamente feito através da Internet. E, na abertura do evento, vai falar Christine Lagarde (às 13h desta quarta-feira, hora de Lisboa) e não é de excluir que nas palavras da presidente do BCE os investidores vejam pistas de que, apesar da notícia positiva sobre a vacina da Pfizer, o banco central irá continuar a usar todo o seu poder de fogo para garantir que a crise económica é ultrapassada.
Além de Lagarde, também Jay Powell e Vítor Gaspar vão participar no Fórum do BCE
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“Bancos centrais num mundo em mudança” é o título do Fórum anual do BCE, que normalmente se realiza em maio em Sintra mas que, este ano, foi adiado alguns meses e irá acontecer apenas através da Internet. Será ao longo destes dois dias – 11 e 12 de novembro – e o programa está disponível, na íntegra, nesta ligação.
Alguns destaques: o discurso de abertura de Christine Lagarde será esta quarta-feira, às 13h de Lisboa; o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar (hoje diretor no FMI) participa, na quinta-feira às 14h15 num painel sobre regras orçamentais e estabilização macroeconómica; e Jay Powell, presidente da Reserva Federal dos EUA, acompanha Lagarde no último painel deste evento, que começa às 16h45 de quinta-feira.
E será importante dar esse sinal, dizem os analistas, porque apesar de as bolsas terem tido na segunda-feira um dos dias mais eufóricos de que há memória, uma análise ponderada reconhece que, mesmo que não existam solavancos significativos no caminho até à superação mundial desta pandemia, os desafios são ainda muitos e sabe-se que ainda vai levar algum tempo até que as economias recuperem da destruição causada por esta crise pandémica.
Mesmo com uma vacina bem sucedida, serão necessários meios e tempo para a produzir, para a distribuir em condições e para a aplicar. Até lá, “há um longo caminho a percorrer“, diz o Rabobank: “vamos assumir um cenário bastante otimista que é dizer que, no final de 2021, não restarão quaisquer vestígios de impacto económico deste vírus. Até lá, vai continuar a ser necessário um volume enorme de apoios públicos às empresas e às famílias e, portanto, os níveis de dívida vão continuar a crescer”.
Por isso, acrescenta o banco holandês, “com endividamentos tão elevados, os bancos centrais vão continuar a ter de manter as taxas de juro suprimidas durante muito tempo, para que esse endividamento seja sustentável” – e isto sem falar em fatores como os “custos humanos dos lockdowns“, a perda de aptidões profissionais devido ao desemprego de longa duração e as dificuldades na formação das pessoas. São fatores que vão continuar a assombrar as economias e a retirar-se produtividade por “muitos e longos anos”, mesmo com uma vacina contra a Covid-19.
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