Negociações nos corredores até ao último minuto, o Governo fechado numa sala, deputados do PS a entrar e a sair, confusão em praticamente todas as bancadas parlamentares. Foi uma manhã longa e muito tensa no Parlamento. Um deputado do PSD (Álvaro Almeida) pediu liberdade de voto a Rui Rio para poder votar contra o travão parlamentar à injeção de capital no Novo Banco, e viu Rio a negá-la. Três deputados do PSD/Madeira estavam apostados em salvar o Governo e acabaram a roer a corda. Alta pressão no gabinete do CDS, onde foram existindo conversas diretas com o Executivo socialista. Duas cambalhotas em 24 horas — uma no PAN, que afinal se absteve para facilitar as contas ao Governo, e uma no Chega, que começou por votar contra, depois anunciou abstenção e acabou a votar a favor. E uma evidente marcação cerrada à deputada mais disputada do dia, Joacine Katar Moreira, que não cedeu ao Governo, e acabou a votar ao lado do Bloco de Esquerda. O Governo fez (quase) tudo que podia para evitar a derrota. Mas falhou e tem agora um problema enorme pela frente.
O filme começou a ser contado na noite de quarta-feira. O Parlamento aprovou a proposta do Bloco de Esquerda para travar as autorizações de despesa do Orçamento ao Fundo de Resolução (para o Novo Banco), e tudo parecia decidido: PSD, BE, PCP e PAN estavam a favor desse travão. O CDS abstinha-se, e o Chega e o Iniciativa Liberal estavam, a par do PS, contra. Era uma grande contrariedade para o Governo, que deixava de poder injetar verba no Novo Banco sem a conclusão de uma auditoria prévia para apurar os indícios de má gestão da Lone Star. Rui Rio infligia um golpe duro no porta-aviões socialista.
O Governo foi manifestamente apanhado de surpresa. Como os Verdes e as deputadas não inscritas não têm assento na comissão de orçamento e esses quatro votos poderiam fazer toda a diferença, a proposta seria chamada a plenário esta manhã, para a votação ser repetida — desta vez com todos os deputados presentes.
Refeitos do choque, os socialistas lançaram-se rapidamente numa estratégia de dramatização, denunciando publicamente a “bomba atómica” que PSD e partidos da esquerda se preparavam para acionar. Nos bastidores, começaram a estudar de que forma podiam evitar a ‘coligação negativa’ formada no Parlamento. O CDS, em particular, mas também PAN e deputadas não-inscritas foram identificados como parceiros a negociar. E a pressão começou.
Novo Banco. Golpe do PSD pode obrigar Governo a retificativo
PS e BE fazem marcação cerrada a Joacine Katar Moreira
Primeiro take. Depois de um primeiro debate sobre o tema, em que o PAN fez questão de não dizer como iria votar — se manteria o sentido de voto da véspera ou se daria uma cambalhota para salvar o Governo –, Eduardo Ferro Rodrigues anunciou que o plenário iria fazer uma (primeira) pausa. Para quê? Para os deputados se acertarem e decidirem como iram votar essa e outras medidas. Foi o tiro de partida para uma autêntica corrida de corredores e de bancadas, corrida aos telefones, e reuniões improvisadas no meio do hemiciclo, num sprint de convencimento que ficou marcado por uma marcação cerrada total à deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.
Primeiro foi a líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, que se aproximou da deputada Joacine Katar Moreira ainda quando o debate decorria. Sentou-se ao seu lado, na última fila do hemiciclo, e conversaram durante alguns minutos. Depois, a Ana Catarina seguiu-se Constança Urbano de Sousa, também deputada socialista que costuma ser a pivô do Governo/PS nas negociações com a ex-deputada do Livre. Constança Urbano de Sousa prosseguiu a conversa e, mais tarde, iria sentar-se ao lado da deputada, nas cadeiras que são destinadas a deputados do Bloco.
Nem um minuto depois, seria o deputado Jorge Costa, do Bloco, que iria ocupar o lugar livre ao lado da deputada para dois dedos de conversa em sentido contrário: era preciso convencê-la a votar a favor da proposta. E depois de Jorge Costa sair, era Ana Catarina Mendes quem voltava a ocupar essa mesma posição. O PS não largava o osso. Foi assim durante vários minutos. Até que a deputada mais disputada do momento saiu por instantes do hemiciclo.
Por esta altura, Joacine Katar Moreira dizia ao Observador que estava “muito ocupada”, enquanto segurava no telefone, e que ainda não tinha “decidido nada”. Do lado de fora do hemiciclo, o Governo estava na sala do Governo à espera que o impasse se resolvesse. Já com o primeiro-ministro e alguns ministros dentro de portas, iam entrando e saindo peças-chave da negociação com os partidos, como o deputado João Paulo Correia e a líder parlamentar Ana Catarina Mendes. Duarte Cordeiro, o pivô da geringonça, esteve sempre nos corredores agarrado ao telefone e a falar com ministro das Finanças. O ar de preocupação era evidente.
A pausa parlamentar ainda decorria e Joacine Katar Moreira volta ao seu lugar no hemiciclo. Assim que a vê, o deputado bloquista Jorge Costa, que por esta altura reunia com o núcleo duro da direção do BE (Catarina Martins, Mariana Mortágua e Pedro Filipe Soares) numas filas abaixo do hemiciclo, dirige-se na sua direção. Mas trava a passada a meio quando vê que, sentado ao lado de Joacine, está o deputado socialista Filipe Neto Brandão, coordenador da comissão de orçamento e vice-presidente da bancada socialista. A marcação estava a ser cerrada. Minutos depois ainda seria a vez do deputado socialista Pedro Delgado Alves se aproximar da última fila, para mais dois dedos de conversa com a deputada.
A dada altura, a sensação que reinava na sala era de que o PS estava a conseguir convencer o PAN a pelo menos abster-se e as deputadas não inscritas a votarem ao seu lado, e, estava salvo porque a proposta seria rejeitada. Mas não estava no papo. Depois de Ferro Rodrigues ter retomado os trabalhos e dado início às votações, sobre outras normas avocadas, o socialista João Paulo Correia pediria a palavra para pedir nova pausa de 20 minutos. Para quê? Para continuarem as negociações sobre o Novo Banco. Afinal, ainda não estava seguro. As contas eram delicadas.
Como as contas estavam por um fio
Na quarta-feira à noite, tinha sido esta a votação da proposta do BE para travar a transferência do Novo Banco:
PS, IL e Chega votaram contra;
PSD, BE, PCP e PAN, a favor;
CDS absteve-se.
Resultado: 110 deputados a favor e 111 contra. Margem mínima, mas suficiente para a proposta do Bloco passar.
Problema: PEV e deputadas não inscritas (Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues) não tinham votado, porque não tinham assento naquela comissão.
Daí que a proposta tenha sido avocada a plenário esta manhã. E como estavam as contas esta quinta-feira de manhã, depois do debate sobre o tema?
PS e IL anunciaram logo que mantinham voto contra;
Chega anunciou que mudaria sentido de voto para abstenção;
PSD, BE, PCP e PEV anunciaram que votariam a favor da proposta que travava a transferência do Estado para Novo Banco (sem necessidade de auditoria prévia);
CDS anunciou que mantinha abstenção.
Resultado: 109 deputados contra, 110 a favor. Para já.
Problema: Faltava saber como votaria o PAN, que não anunciou se manteria o voto ou se iria afinal abster-se, e faltava saber o que fariam as duas deputadas não inscritas — Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. Ou seja, se o PAN se abstivesse, e como o Chega afinal tinha mudado o seu voto de contra para abstenção, era preciso que as duas deputadas não inscritas caíssem para o lado do PS para salvar o Governo.
Problema 2: Em caso de empate a regra é que a votação se deve repetir e, se se mantiver o empate, a proposta de alteração é rejeitada.
Ou seja, o Governo tinha mesmo de convencer Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues a votarem contra a proposta do Bloco de Esquerda. Conseguiu? Não. Cristina Rodrigues fez o que o Governo queria, mas Joacine não.
PSD Madeira. A salvação do governo podia estar nos desalinhados?
Segundo take. Nova pausa para negociações e nova ronda de telefonemas, movimentação e entra e sai nos gabinetes. Eram os 20 minutos finais para o Governo e o PS tentarem inverter o rumo e ver chumbada a proposta dos bloquistas. Foi aí que o Observador assistiu a uma azáfama de todo o tamanho junto do gabinete parlamentar do CDS, com os cinco deputados do CDS em alvoroço porque corria a informação de que o líder do partido, Francisco Rodrigues dos Santos, poderia dar liberdade de voto para alguns deputados se desalinharem. Mas afinal não, o CDS votou mesmo pela abstenção.
O alvoroço estava afinal uns metros ao lado, na bancada madeirense do PSD. Por esta altura, era ver Sara Madruga da Costa a falar alto ao telemóvel e a falar depois com o colega de bancada Paulo Neves, também do PSD/Madeira. Alguma coisa parecia estar prestes a acontecer.
E foi mesmo isso que aconteceu quando Ferro Rodrigues chamou os deputados a votar: os três deputados do PSD Madeira votaram inicialmente ao lado do PS e, juntamente com os votos do Iniciativa Liberal e da deputada Cristina Rodrigues, a proposta do Bloco que travava injeções no Novo Banco parecia que ia ser rejeitada. O Observador apurou junto de fontes da bancada do PSD que houve de facto tentativas de negociação entre o Governo e os três deputados do PSD/Madeira. Não seria a primeira vez: no Orçamento para 2020, os madeirenses desalinharam e abstiveram-se na generalidade, furando a disciplina de voto. Se o filme se repetisse, era o Governo a ganhar.
Só que não. Num instante, lá está, tudo pode mudar. E mudou: Sara Madruga da Costa pediu a palavra para dizer que, afinal, tinha-se enganado. O voto dos três deputados do PSD Madeira, afinal, ia ser igual ao voto do PSD.
Resultado? A proposta do Bloco foi mesmo aprovada, com os votos a favor do PSD, do PCP, do PEV, e da Joacine Katar Moreira. Ah, e de André Ventura, do Chega.
André Ventura, o deputado que ia votar contra, depois anunciou abstenção e afinal votou a favor
É que a cambalhota final seria de André Ventura — embora o seu voto não tenha sido decisivo. Depois de ter votado contra na votação de quarta-feira à noite, em comissão, ou seja, ao lado do Governo/PS, André Ventura anunciou esta manhã no período de discussão que iria afinal abster-se, apenas porque achava que a forma como a proposta do BE estava redigida era uma “aberração jurídica”.
No final, contudo, quando a votação foi repetida devido ao engano da deputada do PSD Madeira, o voto de André Ventura foi afinal a favor, o que faz com que o Chega tenha passado de voto contra, na quarta-feira, para voto a favor, na quinta-feira.
Isso mesmo foi notado no Twitter pelo líder parlamentar do BE: “André Ventura fez a tripla de quem não tem espinha dorsal, não quer afrontar os poderes do sistema financeiro e não quer ficar fora de nenhuma fotografia que ache apetecível”. “Oportunismo parlamentar”, resumiu Pedro Filipe Soares.
No final, foi assim que ficou. A proposta do Bloco de Esquerda que impede o Orçamento de autorizar verbas para o Fundo de Resolução, e que obriga a um orçamento retificativo caso o Governo venha a pedir no futuro autorização ao Parlamento para essa verba, foi aprovada com os votos do BE, PSD, PCP, PEV, Chega e Joacine Katar Moreira. O CDS e o PAN abstiveram-se. E o PS conseguiu apenas ter a Iniciativa Liberal e a deputada Cristina Rodrigues (ex-PAN) do seu lado. Ou seja, ficou 112 contra 110 e a proposta foi aprovada. Por um triz, e depois de muito suor.