Tinha alguma dificuldade em ser intitulada como encenadora, criadora ou dramaturga, mas com o tempo foi-se habituando ao rótulo e à responsabilidade. Sara Barros Leitão há muito que deixou de ser apenas atriz, hoje investiga, cria, encena e dirige. Teoria das Três Idades (2018) ou Todos os Dias me Sujo de Coisas Eternas (2019) são exemplos disso no seu percurso.

Em 2020, fundou Cassandra, uma estrutura de criação artística que lhe permite reforçar e provocar o seu próprio trabalho, tornando-o mais livre e autónomo. “A intenção é tornar o meu trabalho mais concreto e menos esporádico”, explica ao Observador. O nome, Cassandra, é homónimo de uma mulher da mitologia grega que Apolo amaldiçoou por ter recusado a sua sedução, tornando-a capaz de prever o futuro sem que ninguém acredite nela. Sara usa esta figura mítica corajosa, apesar da sua dificuldade em ser ouvida e compreendida, como uma inspiração e um exemplo no seu processo criativo.

À boleia desta nova estrutura, a criadora, feminista e ativista decidiu lançar um projeto que junta o feminismo e a literatura: HeróidesClube do Livro Feminista. “A ideia de um conjunto de pessoas se juntar para ler um livro e discuti-lo é muitas vezes romantizada e está muito associada à mulher e ao seu direito negado de discutir num espaço público”, justifica, acrescentando que atualmente não existem muitos ciclos com estas premissas.

“O nome do projeto — “Heróides” — é roubado ao livro homónimo de Ovídio, em que o autor escreve várias epístolas assinadas pelas heroínas da mitologia grega e romana, endereçadas aos seus amantes. O livro é muitas vezes descrito como um livro de autoria masculina e voz feminina”, lê-se na descrição do clube.

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A intenção surgiu quando uma amiga sua faz o simples exercício de registar todos os títulos dos livros que tinha lido, com o nome do autor e a sua nacionalidade, chegando à conclusão que a maioria eram homens, brancos e europeus. “O que lemos influencia a forma como vemos o mundo, é o perigo da história única e da visão deturpada que podemos ter. Queremos salvarmo-nos, a nós e ao mundo, e o caminho para isso é mesmo o feminismo”, sublinha.

Sara Barros Leitão, atriz, encenadora e voz crítica das políticas culturais, recebe Prémio Revelação do Teatro Nacional D. Maria II

Depois de ter ganho a primeira edição do Prémio Revelação do Teatro Nacional D. Maria II, Sara Barros Leitão decidiu investir o valor total do prémio neste projeto, aspirando conceber um espaço de leitura, discussão, pensamento e empoderamento, que também “proporcione revoluções interiores e muitas pontes” entre os participantes.

Para que tudo ganhasse forma, pediu a 12 pessoas que a inspiram em diferentes áreas, da investigação ao ativismo, das minorias às artes, e pediu-lhes para escolherem um livro, “não necessariamente feminista”, mas que estivesse disponível numa biblioteca, tivesse tradução em português e custasse até 20 euros. “O acesso a estes livros também tem que ser feminista, não interessa nada chegar a uma obra feminista pela Amazon, que é uma empresa multinacional onde colaboradores trabalham com poucas condições. É importante democratizar o acesso a estes livros, poder requisitá-los numa biblioteca ou comprá-los ao livreiro da nossa rua.”

Em 2021, o desafio é criar uma comunidade de leitura que aceite o convite de ler um livro por mês e que, no último sábado de cada mês, reúna, via Zoom, para o discutir. Cada sessão tem a duração estimada de duas horas, será orientada por um dos convidados e terá sempre interpretação em Língua Gestual Portuguesa. A participação nas sessões é gratuita e necessita de uma inscrição prévia, que oderá ser feita a partir do dia 1 de janeiro, sendo que o primeiro encontro será dia 30, das 11h Às 13h.

“As sessões serão online e fechadas às pessoas inscritas, não serão gravadas nem publicadas mais tarde. Pretendo que este seja um espaço seguro, sem exposição, sem likes ou comentários”, esclarece a artista, revelando que também não conhece todos os livros sugeridos e mesmo quem não o leia até ao fim, pode e deve participar para partilhar essa mesma experiência.

Sara Carinhas, Ana Catarina Correia, Mónica Assunção, Verónica Lopes, Joana Cottim, Angella Graça, Alcina Jacinto Faneca, Sofia Frade, Nuna, Marco Mendonça e Paula Cardoso serão os convidados que irão sugerir obras como Todos devemos ser feministas de Chimamanda Ngozi Adichie, Medeia de Eurípides, Beloved de Toni Morrison, As ondas de Virginia Woolf, Carta à minha filha de Maya Angelou, ou TransIbericLove de Raquel Freire.

Uma digressão e um novo monólogo sobre o trabalho doméstico feminino

A par deste clube do livro feminista, Sara Barros Leitão vai arrancar o próximo ano com uma digressão nacional e internacional do espetáculo de Tiago Rodrigues, Catarina e a Beleza de Matar Fascistas. Em janeiro passará pela Alemanha, em fevereiro pelo Porto e em março por Ílhavo.

Já na segunda metade de 2021, em novembro, conta estrear em Lisboa uma nova criação, sendo também o primeiro espetáculo da estrutura Cassandra. “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa” será encenado e escrito pela artista e parte do primeiro sindicato do serviço doméstico em Portugal.

Neste trabalho, Sara conta com a ajuda de uma socióloga no seu processo criativo para abordar trabalho doméstico e reprodutivo feminino, “não remunerado e não reconhecido”. “Em média, as mulheres trabalham mais 1h40 que os homens em trabalho doméstico”, revela, adiantando que é esta desigualdade, ainda visível nos nossos dias, que irá explorar em palco.