“Gatuna, gatuna, gatuna, gatuna!”. Quem se distraísse por alguns segundos poderia pensar que estava, de repente, num estádio futebol rodeado por adeptos carregados de testosterona e furiosos com uma decisão do árbitro — ou da árbitra, neste caso. Não era o caso. O campo era o Auditório Paço da Cultura, na Guarda, o artista era André Ventura, a adversária era Ana Gomes, a “expressão do pior” que a democracia já produziu e o remate pertencia ao líder do Chega. Os adeptos vibravam.
Tem sido sempre assim. Há poucas palavras mágicas que mexam tanto com os apoiantes de André Ventura como “Ana Gomes”. “José Sócrates”, como se percebeu esta quinta-feira, rivaliza. “Marisa Matias” não fica longe. “António Costa” e “Marcelo Rebelo de Sousa” fazem correr o sangue, mas não é a mesma coisa. “Ana Gomes” não. “Ana Gomes” é a flauta de Ventura. Sempre que o candidato do Chega pronuncia o nome da socialista os fiéis pulam, apupam, gritam, agitam-se, enraivecem-se.
Não importa o tema. Seja por tirar uma foto com uma mulher da etnia cigana, seja por Ana Gomes defender a regionalização, o efeito é o mesmo: os ataques de Ventura provocam uma raiva visceral junto dos seus. Esta noite, o mote foi, precisamente, o facto de a socialista defender a regionalização. Vai daí, Ventura acusou Ana Gomes de querer distribuir “tachos” pelos camaradas socialistas e não se importou em carregar na tinta. “Ana Gomes, não és bem-vinda em Portugal. Nunca serás!”, atirou-lhe o candidato do Chega.
A sala, com cerca de 50 pessoas (o máximo autorizado), vibrava ao som da música do líder. A sondagem publicada esta quinta-feira pelo Observador/TVI/Pitagórica, que o dá à frente de Ana Gomes, foi gasolina na fogueira da campanha. “Nós sabemos que já estamos em segundo lugar. Ultrapassámos Ana Gomes e sabemos há muito tempo que estamos à frente de Ana Gomes”, celebrou Ventura.
O líder e candidato do Chega sabe que a dispersão de votos à esquerda o pode beneficiar. E que a campanha, que em parte tem vivido das provocações de Ventura e das reações às provocações de Ventura, o pode beneficiar até ao dia 24 de janeiro. Mas os votos nas redes sociais não valem.
“Temos de sair de casa e ir votar. Não acreditem em vitórias antecipadas. É muito simples e muito fácil de fazer: sair de casa e votar André Ventura. O pior que nos podia acontecer era perdermos por falta de comparência. Vamos esmagar a esquerda, mas para isso temos de sair de casa e votar”, apelou uma e outra vez André Ventura.
No final, e já depois de ter prometido “levar Marcelo Rebelo de Sousa à segunda volta” e de ouvir o hino nacional, passado o pico de adrenalina, Ventura agarrou-se ao peito e ao púlpito. Estava cumprida mais uma etapa depois de um dia com novos protestos.
Pode ouvir aqui a reportagem da Rádio Observador:
https://observador.pt/programas/reportagem-observador/ventura-discursa-em-frente-a-manifestantes-e-tao-bonito/
Na terra de Sócrates, agitar o papão de Sócrates
A tarja com a palavra “fascista” escrita em letras garrafais fazia prever mais um momento tenso de campanha. Numa tarde de janeiro anormalmente quente em Castelo Branco, o tempo — e o prenúncio de um confinamento generalizado — convidava a passeios junto às ‘docas’, espaço aberto e zona verde da cidade. A maioria, no entanto, estava ali para ver a atração do dia: André Ventura. Uns quantos para apoiar o candidato do Chega; outros (muitos menos) para apupar o candidato dos Chega. Os dois grupos com um propósito tão simples como primitivo: trocarem insultos.
Ainda Ventura não tinha chegado — voltou a aparecer cerca de 60 minutos depois da hora marcada — e já as duas tribos se mediam. “Aqueles dois ciganos ali ao fundo… bandidos, pá”, comentavam em surdina dois apoiantes do Chega, devidamente identificados com autocolantes do partido no peito. “Ventura, és um boi”, gritava à distância uma das figuras masculinas visadas.
Assim que Ventura chegou, a tensão ganhou uma dimensão física. Só a intervenção de um agente da PSP — a polícia vigiou de perto toda ação de campanha — impediu que um manifestante anti-Ventura e um dos elementos do staff do candidato passassem a vias de facto. Enquanto uns poucos gritavam “fascista”, outros, mais, devolviam “vão trabalhar”. Não foi o único momento de alguma violência, que foi para além da verbal. A determinado momento, já com Ventura a discursar, um dos apoiantes do candidato deu um chega para lá numa jovem mulher com pouco mais de 20 anos. Acabariam por ser separados, sem mais.
Apesar do nervosismo evidente da caravana Ventura, toda a ação decorreu sem mais percalços, até porque, além da forte presença da polícia e da segurança privada de Ventura, os manifestantes anti-Chega eram em muito menor número e estavam quase a um campo de futebol de distância.
Ventura seguiu indiferente a tudo isso. Aliás, o candidato e líder do Chega começou a sua intervenção com uma nova provocação aos que se manifestam contra ele — uma constante ao longo de toda a campanha. “Não é bonito que em cada distrito onde vamos andem estes subsidiodependentes todos atrás de nós. Quem não tem nada para fazer, senão andar com bandeiras coloridas [LGBTI] às costas em vez de trabalhar, merece uma palavra: ‘Vergonha, vergonha, vergonha’”.
A partir daí, Ventura vestiu a pele de uma espécie de mártir em potência. “Não temos medo de protestos. Façam-me o que quiserem, apontem-me o quiserem e persigam-me o que quiser. Não vou desistir nunca.”
Os apoiantes aplaudiam com a mesma devoção com que aplaudem cada sílaba pronunciada pelo líder onde quer que o líder vá. Mais ainda quando Ventura acenou com um dos símbolos que mais abominam no Chega: José Sócrates, que viveu e cresceu politicamente primeiro na Covilhã e depois em Castelo Branco, por onde foi eleito deputado e onde presidiu à distrital do PS.
Pautando a intervenção com referências a Luís Correia, o ex-autarca socialista de Castelo Branco que perdeu o mandato depois de condenado pelo crime de prevaricação, Ventura não mais largou os temas José Sócrates e Justiça e partiu da denúncia do “mar de corrupção” que engoliu o país. Com nova provocação ao grupo de adolescentes que à distância gritava “fascista” e “não passarão”.
Sem dar grande importância à idade dos visados, Ventura sugeriu que tinham sido cúmplices da governação socialista e que portanto não tinham direito de se manifestar com o Chega. “Onde estavam quando José Sócrates destruiu o país? Se querer que os corruptos não subam ao poder é fascismo, então sim, somos fascistas”, atirou a determinada altura.
No final, em declarações aos jornalistas, Ventura, que na véspera tinha insultado os seus adversários políticos (Jerónimo, o “avô bêbado”, e outras referências), optou por culpar os outros pelas suas próprias palavras. “É a campanha que os adversários fazem contra mim”. E com outra tirada carregada de dramatismo (“não tenho receio, sou o político mais ameaçado desde o 25 de Abril”), embalado por um alegado confronto épico que acabara de ter (não teve), Ventura despediu-se de Castelo Branco.
Artigo atualizado ao longo do dia