O primeiro desabafo surgiu no sábado, no final de 12 horas de serviço de urgência como voluntário no Hospital de Cascais. “Porra para isto!”, escreveu o médico infecciologista e deputado Ricardo Baptista Leite. “Nunca vi tanta gente morrer em tão curto espaço de tempo como nestas 12 horas de urgência. Porra para isto!”

Na verdade, face às notícias que iam surgindo da enorme pressão que o avolumar de casos de Covid-19 está a colocar sobre os hospitais da região de Lisboa – e um pouco por todo o país – o relato nem era de estranhar. A mortalidade está a aumentar nos hospitais, cada vez sobrelotados.

Este domingo, com 24 horas de reflexão em cima – “para garantir a racionalidade das minhas palavras” – Ricardo Baptista Leite alargou-se na descrição do que se passa num covidário em Portugal, neste caso . É “um cenário de guerra”, com ventilações invasivas de doentes, poucas vagas nas enfermarias, médicos a fazer escolhas sobre quem atender, consoante quem tem mais probabilidade de viver.

https://www.facebook.com/RBaptistaLeite/videos/867502857359608

“Vi uma colega médica a chorar depois de sair do covidário mais de 5 horas depois do término do seu turno. Física e psicologicamente esgotada. Cada vez que se estabiliza um doente, havia já mais 3 ou 4 doentes instáveis a entrar pela porta dentro. Vi uma enfermeira praticamente a não conseguir respirar ao tirar o fato de proteção depois de horas infindáveis junto dos doentes”, conta Ricardo Baptista Leite num longo post no Facebook.

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A enfermeira, relata, “limitou-se a acenar com a cabeça”, imediatamente antes de ficar simplesmente a fitar o chão com o olhar perdido. “O silêncio é o nosso companheiro na dor. O peso da ausência de palavras”, reflete Baptista Leite, ainda na mesma publicação. O cenário que descreve é muito próximo do se uma guerra — fala dos doentes com insuficiência respiratória grave, da falta de vagas nos cuidados intensivos e das opções que é necessário tomar para gerir as poucas camas que restam na enfermaria. “Ventilamos os doentes ali, em pleno serviço de urgência”, revela.

Mantém-se pressão sobre hospitais da Grande Lisboa

Muitas vezes, salienta Baptista Leite, os doentes “menos graves” que estão a aguardar pelo teste ficam a assistir a tudo o que se passa, já que estão num espaço “demasiado pequeno para tantas dezenas”. “É preciso estabelecer prioridades”, admite o deputado e infecciologista. “O cenário é de catástrofe. Temos tantos doentes graves na casa dos 40, 50 e 60, muitos sem outras doenças, que simplesmente não podem morrer. Não podem! Assumem-se por isso prioridades”, descreve.

Na impossibilidade de acompanhar todos, diz, “fazem-se escolhas tão difíceis sobre quem tem maior probabilidade de morrer, faça-se o que se fizer. É devastador ver equipas de médicos forçados a escolher quem são os doentes com maior probabilidade de viver para os poder assumir como prioritários”. São horas e horas de pressão e azáfama, acrescenta o deputado, durante as quais admite que muitos profissionais têm de fazer um esforço para conter as lágrimas até ao final do turno.

Coimbra tem 12 vagas e Leiria outras 11. “Se ficar tudo em cima dos hospitais, eles não vão aguentar”

Uma das vozes mais críticas da forma como o governo tem gerido o combate à pandemia, Ricardo Baptista Leite perspetiva para os próximos dias um aumento de novos casos, internamentos e doentes nos cuidados intensivos. “Um em cada 5 testes realizados no nosso país é positivo. E a tentativa de manter as pessoas em casa para tentar diminuir a dimensão da epidemia simplesmente falhou”. No mesmo texto, Ricardo Baptista Leite assume as críticas à forma como a situação pandémica está, atualmente, a ser conduzida em Portugal.

Começa por sugerir um “confinamento absoluto durante três semanas”. “Mobilizar todos os meios de saúde disponíveis no país para as próximas semanas” — dos recursos humanos aos hospitais, clínicas e tendas de campanha. Defende uma preparação antecipada do momento em que serão levantadas as medidas restritivas e, por fim, “usar o facto de Portugal ter a presidência do conselho da União Europeia para exigir uma renegociação das vacinas Covid-19 de modo a acelerar o ritmo de vacinação. Temos de vacinar 80% da população até Junho de 2021”.  “Este mês pode estar perdido, mas ainda vamos a tempo de salvar o resto do ano”.

E uma última sugestão: “Contratualizem-se os hotéis do país para o efeito, dividindo-os em hotéis para infetados e outros para suspeitos. Testar, identificar e isolar. Não há outra forma”.