Foi uma visita “surreal”. A expressão foi usada esta terça-feira pelo próprio candidato à Presidência da República Tiago Mayan Gonçalves, apoiado pela Iniciativa Liberal, depois de uma visita matinal ao Hospital Compaixão, em Miranda do Corvo (distrito de Coimbra).
A tal “surrealidade” da visita não se deveu a uma situação hospitalar caótica, semelhante à que se viu nos últimos dias em hospitais como o Santa Maria, em Lisboa, o hospital de Torres Vedras ou o Garcia da Orta, em Almada. Nesta unidade hospitalar de Miranda do Corvo, não se veem sinais de falta de camas, de incapacidade de resposta, de doentes com motivos para se queixar por falta de condições. Até porque no Hospital Compaixão, não há sequer sinais de doentes — com Covid-19 ou “não Covid” —, médicos, enfermeiros ou auxiliares de saúde.
O hospital é propriedade da Fundação Assistência, Desenvolvimento e Formação profissional (ADFP), uma entidade que se apresenta como uma “Instituição de Solidariedade Social, sem fins lucrativos, com estatuto de utilidade pública”. E foi construído, claro, para ser utilizado. Em 2018, “estava para abrir”, explicava o presidente da ADFP, Jaime Ramos, durante a visita. No início de 2019, “ficou pronto”. Mas depois “entrou-se num processo de bloqueio”, o Estado não responde às tentativas de contacto e chuta a bola para a Autoridade Regional do Centro (ARS), que também não se pronuncia.
O equipamento está lá, nas salas e nos quartos (são 55) que era suposto estarem já a receber doentes — em alguns casos com máquinas, aparelhos e camas envoltos em plástico. Mesmo numa fase de sobrecarga hospitalar, o imbróglio não se desfaz. E Tiago Mayan Gonçalves aproveitou o misterioso caso para voltar a fazer críticas ao Governo e à sua resposta à pandemia, para voltar a insistir que nesta fase é preciso usar “toda a capacidade instalada de saúde”, não apenas pública (hospitais do SNS) mas também “do setor social e dos privados”. Por exemplo? Um hospital que só não está ao abandono porque há técnicos que ali se deslocam regularmente, para assegurar a manutenção do equipamento e garantir que não deixa de funcionar.
“Vi ventiladores fechados numa sala, que foram disponibilizados sem custos”
Depois da visita, em declarações aos jornalistas, o candidato presidencial lembrava que “os privados do setor social investiram dez milhões de euros” no hospital, que tem “todo um conjunto de valências que seriam necessárias neste contexto”. Por exemplo, aparelhos como ventiladores (três), salas cirúrgicas, consultórios de auscultação e equipamento para RX, TAC’s e ecografias, por exemplo. E acrescentava:
Independentemente das ideias e ideologias, independentemente de conceções sobre como deve ser o acesso aos cuidados de saúde, o Governo — via ministério da Saúde — tem de começar a usar toda a capacidade de saúde instalada do país”, notando ainda que “a região Centro está a entrar num ponto de rutura, já ouvimos a Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro dar conta disso mesmo, já ouvios a Ordem dos Médicos dar conta disso mesmo e não entanto temos aqui um equipamento com valências únicas que não está a ser utilizado.”
Um exemplo? “Vi ventiladores fechados numa sala, que foram disponibilizados sem custos” para o Estado, dizia Tiago Mayan Gonçalves. O candidato da Iniciativa Liberal dizia ainda que não queria “saber do passa-culpas entre ministério, administrações regionais e DGS, alguém tem de tomar uma decisão e diria que o ministério da Saúde é o último decisor nesta matéria”, de quem seria a responsabilidade. “Houve um compromisso assumido, este hospital ia abrir. Depois entrou uma nova ministra da Saúde e este compromisso desapareceu”, acusou ainda, referindo o que acabara de ouvir na visita.
O compromisso terá sido assumido pelo anterior ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, que chegou a visitar o hospital — segundo o presidente da Fundação, que durante a visita confidenciava isso ao candidato: “O Professor Manuel Antunes veio visitar o hospital a determinada altura. Até veio com a doutora Maria de Belém, que não percebia como isto estava fechada. Também cá estiveram o Correia de Campos [antigo ministro socialista], o então ministro Adalberto Campos Fernandes, diziam que era um dor de alma ver uma coisa destas fechada… porque aqui estão as melhores salas cirúrgicas dos hospitais de Coimbra, se excluirmos os privados”.
Em fevereiro do ano passado, quando vimos aquelas notícias de Milão e norte de Itália, enviámos uma carta a alertar que o hospital estava disponível. Não tivemos resposta. Dia 11 [deste mês], voltei a dizer à senhora ministra que o hospital continuava aqui. Insisti no dia 18 [de janeiro de 2021] e também não recebi resposta”, lamentava Jaime Ramos.
O presidente da Fundação partilhou ainda com o Observador uma carta enviada ao primeiro-ministro António Costa a 25 de março do ano passado:
O importante, notava depois Mayan Gonçalves à saída, não é que o Estado seja “dono de todos os hospitais e patrão de todos os médicos e enfermeiros” — mas sim que cada utente tenha acesso a bons cuidados de saúde, sejam eles públicos, privados ou do setor social. “O que temos hoje é um acesso universal às listas de espera. Ou, no caso deste hospital, inexistência de acesso porque temos o equipamento aqui fechado”.
Ainda no rescaldo da visita, o candidato apoiado pela Iniciativa Liberal deixava uma nota sobre a resposta a doentes não-Covid e ao efeito de afastamento dos portugueses de hospitais por outros motivos: “Deixou-me profundamente preocupado os equipamentos de diagnóstico oncológico que vi aqui parados. Porque estamos a perder o rasto ao diagnóstico oncológico e isso significa que vamos ter futuramente uma pandemia oncológica. Nada disto está a ser considerado quando falamos do combate à pandemia, mas o combate à pandemia tem também de ser um combate a outros problemas de saúde”.
Mayan Gonçalves aproveitou ainda para deixar críticas a Marcelo Rebelo de Sousa. Quando questionado se o Presidente da República deveria deixar um alerta público ao Governo sobre o desaproveitamento de equipamento de saúde, respondeu: “Sim, mas o Presidente da República também podia ter tido outra posição na lei de bases de saúde. Continua a ter um preconceito ideológico carregado nesta questão do acesso dos portugueses à oferta total de saúde, social e privada também. E de facto estamos nesta situação desde março”, voltou a recordar.
O Presidente tem de ter essa palavra, exercer o magistério de influência. O senhor Presidente da República sustenta toda a sua razão de candidatura no facto de estarmos numa pandemia. Então porque não usa a voz para falar dos problemas associados à pandemia? Já nem lhe peço que fale de outros”, apontou o candidato.
Assumindo que já não sabe “muito bem o que dizer” porque tem insistido no tema reiteradamente e todos os dias ao longo da campanha, o candidato da Iniciativa Liberal notava que “já estamos a ver cenários graves, complicados, de pessoas à espera horas em ambulâncias diante de hospitais”. E voltava a instar o executivo a agir e mudar as coisas: “O Governo, através do ministério da Saúde, tem de falar com os privados, com o setor social, com a fundação que é dona desta hospital e pôr estes equipamentos ao serviço da população”.
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Ouvir empresários para apontar ao Governo
À tarde a campanha foi por Zoom e já na sua cidade, o Porto, onde irá fazer mais ações por Zoom e algumas (poucas) ações presenciais ao longo da semana. Numa das ações de campanha, uma conversa com a Associação de Dinamização da Baixa Pombalina, Tiago Mayan Gonçalves ouvia que já fecharam mais de 100 empresas de vários setores da zona da Baixa-Chiado, em Lisboa: empresas criadas recentemente, à procura dos turistas-clientes, e que se ressentiram da pandemia e tiveram de encerrar negócio.
O candidato ouvia queixas sobre o setor do calçado e da moda “não ser muito referido” mas ter sido afetado “de uma forma tão grave ou maior do que o setor da restauração”. Isto porque muitas lojas, que estão “altamente descapitalizadas”; compram os seus stocks, os artigos para as coleções seguintes (primavera-verão e outono-inverno), com “uma antecedência quase de um ano” e fazem “a programação das suas compras numa base anual ou semestral”. Não só perderam clientes como ficaram com muitos artigos armazenados que “ou vão vender em 2021 ao desbarato para depois ser revendido nas feiras” ou “vão vender em saldos com redução de margens”.
Mayan tirava notas, reconhecia que “há todo um ecossistema à volta de cada negócio — basta pensarmos nos fornecedores — que acaba por sair afetado”. E voltava, tal como fizera no dia anterior e nos dias antes desse, a apontar falhas e insuficiências ao Estado na resposta aos empresários e empresas afetadas: “As moratórias não resolvem os problemas, só os adiam. E o Estado não se coíbe de cobrar a tempo e horas”.
Do lado do orador, Vasco Mello, Tiago Mayan Gonçalves ouviria uma ideia com a qual concordava, que tem vindo a subscrever: “Da mesma forma que há o poluidor-pagador, há o Estado fechador que tem de ser indeminizador. O Estado tem de indemnizar as empresas e pagar. Falei com alguns empresários franceses durante o verão passado e uma das coisas que sentiam diferentes é que o Estado lá estava a injetar dinheiro diretamente quer nas empresas quer nos consumidores. E isso fez uma diferença muito substancial na atividade económica depois do desconfinamento”. Em contraponto, queixava-se Vasco, em Portugal “o que acontece é que se fica à espera, à espera… fica-se à espera dos apoios e por questões burocráticas ou não, não vêm”. A dado ponto, o diálogo entre os dois era assim:
VM – Sabe o que me choca mais, Tiago? O Estado para cobrar as dívidas aos particulares é muito expedito…
TMG – Muito!
VM – E quando é ao contrário demora sempre anos e anos e anos…
Depois do que ouvira, o candidato diria que “por mais medidas que se anunciem, elas não estão a chegar ao terreno. É o primeiro grande problema. Mesmo medidas que até certo ponto não são suficientes. Medidas como o lay-off, que era um tipo de medida com relevância, importância e enquadramento em quadro de normalidade, não chega num quadro de absoluta excecionalidade”.
Aos jornalistas, Tiago Mayan Gonçalves resumia assim a conversa: “Infelizmente percebemos que muitas zonas que dependiam do turismo estão em crise e já desde março. E de facto notou-se a falta de respostas do Governo, que anuncia medidas mas não as faz chegar ao terreno e isso acaba por descapitalizar estas empresas. O que ouvi hoje foi que as respostas anunciadas pelo Governo, mesmo sendo poucas não estão sequer a chegar às pessoas”.
Ouvimos medidas já anunciadas há um mês, de apoio ao arrendamento, que ainda não chegaram ao terreno. Ouvimos medidas de lay-off pagas pelos empregadores à espera que o Governo acabe por depois compensar, porque também não estão a chegar ao terreno”, disse o candidato.
Mayan voltou a insistir que “um Governo que decreta fechamento de atividades tem de assumir total responsabilidade desta decisão” e que as medidas são “insuficientes”.
Do voto em lares ao fecho das escolas
Outros temas abordados em declarações aos jornalistas, durante a tarde, foram o encerramento de escolas e o exercício de votos em lares. Sobre as residências de idosos, Mayan Gonçalves apontou: “A liberdade de exercício de voto tem de ser em segurança, sigilo e confidencialidade. Preocupa-me a segurança e saúde das pessoas e não estou a ver que os lares tenham condições objetivas de garantir tudo. Há brigadas com várias pessoas a entrarem em lares… pode soar muito bem concebido num gabinete, num ministério da Administração Interna, mas no terreno é mais complicado”. Aqui, diz o candidato liberal, o Governo lavou as mãos e chutou a responsabilidade para os municípios.
Já quanto a um possível encerramento das escolas, lembrou que + “vários especialistas demonstraram que não havia um problema de contágio nas escolas com jovens” e que estes “podem ter pais em teletrabalho, que não podem cuidar dos filhos. Ou porque são operários, porque estão na linha da frente do combate à pandemia… estas pessoas têm filhos em idade escolar. O que vai acontecer a estas criançsa? Vamos retirá-las das escolas e vão estar encapsulados e guardados num lugar seguro? Qual é a alternativa para os pais e famílias?”.
António Costa pode até mandar fechar escolas, apontou Mayan. Mas nesse caso, “gem de assumir a responsabilidade e dar a resposta aos pais. Há crianças que não têm autonomia suficiente para estarem sozinhas e também a saúde mental é afetada. É preciso garantir que estes jovens e crianças não desaparecem do mapa e terão resposta efetiva”.
Artigo atualizado ao longo do dia