O trabalho em arquitetura é “altamente precarizado”, com falsos recibos verdes, num cenário de 87% de trabalho dependente e um salário médio de 870,75 euros por mês, cem euros abaixo da média nacional, apurada pelo INE em 2018.
Estas são conclusões do “Relatório do Inquérito aos Trabalhadores em Arquitetura”, feito entre 14 de abril e 17 de maio de 2020, na primeira fase da crise epidémica, e divulgado quarta-feira pelo Movimento dos Trabalhadores em Arquitetura (MTA), que promoveu o estudo.
O desrespeito pela lei laboral quanto ao pagamento de subsídios de férias e de Natal, que afetou 39% dos inquiridos, é outra das conclusões do relatório, a que a Lusa teve acesso.
O inquérito recebeu 555 respostas, tendo sido consideradas válidas 536, e foi organizado em duas partes: a primeira debruçou-se sobre a caracterização do trabalhador e da sua situação laboral, e a segunda procurou identificar as consequências provocadas pela crise epidemiológica da Covid-19.
Dos que responderam ao inquérito, em termos de ocupação profissional, 78% é arquiteto de profissão, seguindo-se estagiários, em 14% das respostas, aos quais se juntaram outras atividades, como desenhador, maquetista e medidor orçamentista, em valores iguais ou inferiores a 2% das respostas.
Sobre o modo de prestação de atividade, na caracterização da situação laboral, os trabalhadores em arquitetura, que responderam ao inquérito, são maioritariamente assalariados, com a grande maioria – 63% – a declarar exercer a sua atividade profissional como trabalhador por conta de outrem, em exclusividade; 9% disse ser trabalhador por conta de outrem e trabalhador independente, em simultâneo e, 22%, trabalhador independente.
Todavia, quanto aos assalariados – 63% -, segundo as respostas, apenas cerca de metade destes (47%) possui um contrato sem termo, o tipo de vínculo que garante condições de estabilidade, segurança e proteção social em caso de despedimento, sublinha o relatório do MTA.
Analisando os dados dos que se declararam trabalhadores independentes, nas respostas ao inquérito, as conclusões revelam que 67% concentram toda a sua atividade num só beneficiário, o que desmascara, segundo os autores do relatório, “um peso notório” dos falsos recibos verdes no setor.
Estes alertam ainda para a percentagem de trabalhadores independentes que declararam ter pelo menos metade dos seus rendimentos dependentes de uma só entidade (10% das respostas), defendendo que “é questionável” até que ponto podem também ser considerados independentes.
Deste modo, segundo o MTA, tendo em conta as respostas de trabalhadores por conta de outrem, falsos recibos verdes e trabalhadores independentes com atividade para um só beneficiário, os resultados do inquérito apontam para um cenário de 87% de trabalho dependente, com apenas 7 por cento a corresponderem, de facto, a trabalhadores independentes (com trabalho para vários beneficiários). 6% disseram não possuir qualquer vínculo declarado com entidade empregadora.
Do universo de trabalhadores por conta de outrem, 81% responderam ter um contrato de trabalho com o empregador (contrato sem termo, contrato a termo certo ou contrato a termo incerto), prevalecendo os contratos sem termo (47%). De destacar ainda a percentagem de 15% de inquiridos com contrato de estágio ou apoiado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).
Dos que se declararam trabalhadores independentes, 43% reconheceram-se como falsos recibos verdes e 24% dizem desenvolver 100% da sua atividade para um só beneficiário, o que perfaz um total de 67% de trabalhadores que dependem financeiramente de uma só entidade.
Dos inquiridos que disseram ter uma situação laboral mista, declarando ser trabalhador por conta de outrem e trabalhador independente, 51% têm contrato sem termo, e 29% têm um contrato a termo certo.
No que respeita à situação salarial, o inquérito apurou, nas respostas, que 79% recebem um salário bruto mensal inferior a 1065 euros.
Com salários entre os 1066 e os 1225 euros, estão 11% dos profissionais que responderam ao inquérito; acima deste valor, 1225 euros, há apenas 10%, e a percentagem desce aos 5% para salários brutos superiores a 1425 euros.
Relativamente aos subsídios de natal e de férias, 39% responderam não receber, e 61% declararam ter recebido.
Dos que não receberam, tendo em conta o tipo de vínculos e o modo de prestação da atividade, as respostas abrangem 23% dos trabalhadores por conta de outrem e, entre os falsos recibos verdes dos trabalhadores independentes, esta percentagem sobe para 91%. Nos trabalhadores sem vínculo, 85% não recebeu qualquer subsídio.
No caso dos trabalhadores por conta de outrem, se por um lado a atribuição do subsídio de refeição não está assegurada no Código do trabalho e depende do estipulado no respetivo contrato (…), a atribuição de subsídio de férias é um direito consagrado, pelo que a existência de trabalhadores que declararam não [o] receber (…) é reveladora do incumprimento de direitos laborais básicos”, lê-se no relatório.
Verificou-se ainda que 2% dos trabalhadores que responderam ao inquérito declararam “não auferir qualquer remuneração – facto que evidencia a existência de situações laborais ilegais”, prossegue o documento.
O inquérito apurou ainda que existe distinção salarial de género e que, nos escalões remuneratórios mais elevados, verifica-se a predominância de trabalhadores do sexo masculino, enquanto apenas 3% do total das mulheres que responderam ao inquérito se encontra nos escalões entre os 1425 e 2368 euros de salário.
O MTA destaca que “os valores dos salários brutos declarados” no inquérito permitem apurar uma “média salarial mensal (…), para os trabalhadores em arquitetura, (…) de 870,75 [euros], ficando este valor cerca de 100 [euros] abaixo do salário médio bruto mensal nacional, segundo os dados mais recentes publicados pelo INE [Instituto Nacional de Estatística] (2018)”.
Quanto à pandemia, e às medidas tomadas pela entidade empregadora, após ter sido decretada a obrigatoriedade do teletrabalho, as respostas apontam que o encerramento de instalações abrangeu 80% dos inquiridos. E embora a maioria – 74% – tenha revelado estar em regime de teletrabalho, uma margem de 20% afirmou fazer deslocações pontuais ao escritório e apenas um por cento se encontra em regime de rotatividade. Apenas 5% do total de respostas garantem que foram tomadas todas as medidas de segurança e higiene no local de trabalho.
Apesar da maioria dos inquiridos – 73% – afirmar não ter havido alterações ao seu salário bruto, 14% revelou ter sofrido uma redução de salário.
Há também oito por cento dos trabalhadores que responderam não ter garantida qualquer remuneração e ainda cinco por cento optou pela resposta “outra”, ou seja, sofreu uma perda de remuneração que não se encontrava discriminada nas opções de resposta, o que perfaz um total de 27% de trabalhadores com perdas de salário, no contexto da pandemia. A redução de salário correspondeu, na maioria das situações, a pelo menos 1/3 do valor.
Relativamente ao período inicial da crise sanitária, segundo os dados recolhidos, não foram disponibilizados os meios mínimos para o teletrabalho a 3/4 dos trabalhadores.
A grande maioria, segundo o relatório, ficou com o encargo de assegurar os meios para garantir a atividade, tendo de assumir as responsabilidades do empregador explícitas na lei, nomeadamente as despesas decorrentes da função e a supressão do subsídio de alimentação.
Apenas 2% dos inquiridos declararam que todos os meios (‘software’, ‘hardware’, equipamento e despesas) lhes foram disponibilizados pela entidade patronal, em situação de teletrabalho.
Ainda no âmbito da crise sanitária, à data de encerramento do inquérito (17 de maio), apenas dois meses após o decreto de confinamento, 6% dos trabalhadores encontravam-se em regime de ‘layoff’ e 5% sofreram uma redução no horário de trabalho, enquanto 7% dos trabalhadores que responderam alegaram não lhes ter sido renovado o contrato de trabalho ou terem sido alvo de despedimento.
A falta de garantia do cumprimento de normas de higiene e saúde nos locais de trabalho, a sugestão de burlas ao Estado com sobreposição de teletrabalho e assistência a dependentes, situações de violência moral sobre mulheres gestantes são outras situações que surgem nos resultados do inquérito.
Através dos canais abertos pelo MTA, o movimento refere que, nesta nova fase de confinamento, continuam a ser reportados atos de coação de diversa natureza, infligidos sobre estagiários e trabalhadores em arquitetura, como situações de despedimentos ilegais, corte indevido de subsídios e não cumprimento de obrigatoriedade de teletrabalho, com muitos escritórios a manterem o trabalho presencial.
O “Relatório do Inquérito aos Trabalhadores em Arquitectura” encontra-se publicado no ‘site’ do MTA, http://movimento-mta.pt/.