O diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) defende a liberalização organizada da produção de vacinas contra a covid-19, antecipando que a pressão do mercado clandestino acabará por impor esta solução no futuro.

Numa altura em que os atrasos e a desigualdade no acesso à vacinação contra o novo coronavírus nos países mais pobres fazem levantar várias vozes a favor da liberalização das patentes dos imunizantes já registados, Filomeno Fortes lembrou, em entrevista à agência Lusa, que há já um precedente com os medicamentos antirretrovirais.

E, para o médico angolano, especialista em doenças tropicais, neste processo, os chamados países BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – terão um papel determinante.

“Estou otimista. Com os antirretrovirais [antes de ser aprovada a liberalização] começou a haver produção clandestina em muitos locais. Neste momento, sabemos que alguns países já estão a fazer pirataria para tentar aceder às fórmulas de composição das vacinas que estão a ser produzidas”, disse Filomeno Fortes.

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Segundo o médico, “é muito fácil para a Índia, por exemplo, começar a produzir vacinas em quantidade, entrar no mercado negro a explorar essas vacinas”.

“É preferível anteciparmo-nos, a nível mundial, de forma organizada, e abrimos a possibilidade para a produção livre dessas vacinas com controlo” de instituições como a Unicef, defendeu.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) é responsável, a nível mundial, pelo controlo e distribuição de vacinas como a da febre amarela, cólera ou meningite e está, atualmente, a distribuir as primeiras vacinas covid-19, que chegam, nomeadamente, aos países africanos através do mecanismo Covax.

“A Unicef, a OMS e a Aliança para as Vacinas (GAVI), que controlam a produção e distribuição, neste momento estão praticamente fora da produção destas vacinas. A indústria internacional e o mercado capitalista tomaram conta do negócio e a única hipótese é haver países com algum potencial que virem o disco”, disse.

Neste contexto, apontou como determinante o papel dos BRICS que, há dois anos, assinaram um protocolo para que se aumentasse a produção de vacinas, como a do sarampo ou da poliomielite, para distribuição aos países em vias de desenvolvimento.

“Este grupo, com a liderança da África do Sul, conseguiu a nível mundial que fosse adotada uma decisão da produção livre de antirretrovirais. É uma experiência que vem de há anos e que foi agora retomada”, disse.

Filomeno Fortes assinalou que a produção mundial de vacinas está concentrada na Índia, com a África do Sul, a Rússia e a China a registarem também “grande capacidade”.

África do Sul, Senegal e Nigéria são os países que, no continente africano, teriam capacidade para a produção de vacinas “com nomes genéricos”.

“Foi a estratégia utilizada para a produção de antirretrovirais. Em vez dos nomes comerciais, vêm como genéricos e a patente fica praticamente livre para todos estes países que têm capacidade” para produzir vacinas, disse.

Questionado sobre a forma como as vacinas contra a covid-19 estão a ser distribuídas à escala mundial, com 75% a serem utilizadas em apenas 10 países, o médico angolano assinalou que “nada disto é novidade”.

“Logo que começou a pandemia, percebemos que os países mais desenvolvidos iam absorver as vacinas que fossem produzidas. A solidariedade humana desaparece numa situação de caos mundial, mas os países mais desenvolvidos devem compreender que estarão sempre em risco se não colaborarem para que os restantes países tenham cobertura [de vacinas] de pelo menos 60%”, disse.

Organizações devem juntar-se contra sindemia em África

O diretor do IHMT garante ainda que doenças como a tuberculose estão a ficar descontroladas e pediu esforços conjuntos da Europa, União Africana e CPLP na luta contra a sindemia em África.

“Talvez fosse importante que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), a presidência de Portugal na União Europeia (UE) e a União Africana (UA) se pudessem juntar, em algum momento, para criarem uma ‘task force’ por causa da situação em África”, disse Filomeno Fortes.

O médico angolano falava, em entrevista à agência Lusa, quando passa um ano desde que a pandemia de covid-19 foi declarada.

“Isto já não é uma pandemia, é uma sindemia. Os casos de malária têm estado a aumentar, os casos de tuberculose estão a ficar descontrolados, a situação do VIH Sida está bastante complicada, os doentes não fazem tratamento e o confinamento tem estado a favorecer até a transmissão do vírus do VIH Sida”, disse.

A sindemia resulta da ação conjunta de duas ou mais doenças e de um ou mais problemas sociais ou económicos, que provoca o agravamento global do estado de saúde ou da estrutura socioeconómica de determinada população.

Por outro lado, apontou, as coberturas de vacinas “reduziram-se de forma drástica” e o seguimento de grávidas e crianças “está debilitado”.

De acordo com Filomeno Fortes, a isto junta-se a situação social e económica que tem estado a agravar malnutrição e de outros problemas ligados à saúde.

Fazendo um balanço dos impactos da pandemia de covid-19 nos países africanos lusófonos, o médico angolano mostrou-se satisfeito pelo facto de algumas das preocupações iniciais relacionadas com a fragilidade dos sistemas de saúde e dos mecanismos de vigilância epidemiológica não se terem concretizado.

“À exceção de Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau não tiveram, até ao momento, grande incidência de casos e a letalidade também não foi assim tão elevada”, considerou.

Para isso terão contribuído, segundo o médico, as medidas precoces de fecho de fronteiras e de vigilância epidemiológica, a média etária da população, bem como as temperaturas no continente.

“Todos estes fatores fizeram com que os nossos países não tivessem explosões de casos”, disse.

No caso de Moçambique, Filomeno Fortes considerou que o país conseguiu, logo de início, uma boa capacidade de resposta, tendo desenvolvido rapidamente a capacidade de rastreio e de diagnóstico.

A proximidade com a África do Sul e a mobilidade na fronteira, as catástrofes naturais que têm atingido o país e a violência dos grupos armados “fizeram com que Moçambique apresente atualmente um padrão epidemiológico completamente diferente de outros países”, disse.

Os países africanos de língua portuguesa (PALOP) contaram com o apoio do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), nomeadamente através de sessões de esclarecimento e discussão científica dos aspetos ligados à pandemia, como o uso de máscaras ou a promoção da segurança dos profissionais de saúde.

O organismo deu igualmente apoio à criação de laboratórios para diagnóstico com PCR, mobilizando equipamento, mas também fazendo formação de técnicos.

Foram também promovidos projetos comuns de investigação, decorrendo atualmente estudos sobre as novas variantes em circulação, bem como testagem de anticorpos em países como Angola, Moçambique e Cabo Verde.

No caso concreto das vacinas destinadas a África, Filomeno Fortes considerou que “do ponto de vista logístico” são “uma insignificância muito grande”.

“Não temos garantido mais de 15 por cento de abastecimento logístico dessas vacinas para os nossos países, o que significa que temos de procurar alternativas quer com a China quer com a Rússia”, disse.

O médico angolano adiantou que “já está comprovado que a vacina da Rússia é eficaz”, inclusive para as novas mutações identificadas na África do Sul, Brasil ou Reino Unido.

“Os 70 por cento de vacinas que estão a ser produzidas neste momento a nível mundial vão cobrir apenas 13 a 16 por cento da população mundial. A população em África, parte do Sudeste Asiático e da América Latina, neste momento, está com promessas entre 10 e 20 por cento de fornecimento de vacinas”, disse.

Médico receia que não haja vacinas suficientes para conter epidemia do Ébola

Filomeno Fortes receia que não haja vacinas do Ébola suficientes para conter uma epidemia em larga escala, antevendo um cenário “dramático” se o surto na Guiné-Conacri alastrar aos países vizinhos.

“Há uma grande preocupação porque há a possibilidade de este surto epidémico [na Guiné-Conacri] alastrar novamente para países como a Serra Leoa e a Libéria, tal como aconteceu em 2014”, disse Filomeno Fortes.

Filomeno Fortes explicou que “a transição terrestre” entre estes países continua a ser “muito forte”, o que promove a circulação da doença.

O médico angolano e especialista em doenças tropicais falava em entrevista à agência Lusa depois de, em 14 de fevereiro, ter sido declarado um novo surto de Ébola na Guiné-Conacri, o primeiro na África Ocidental desde a epidemia de 2014-2016 que matou mais de 11 mil pessoas nestes três países.

Na semana anterior, tinha sido declarado um 12.º surto da doença na República Democrática do Congo.

“Apesar de haver algum confinamento por causa da covid-19, a informação que temos é que as autoridades sanitárias estão a perder o controle da situação”, disse.

O surto, que ocorreu na região de N ‘ Zerekoré, no sudeste da Guiné-Conacri, causou até ao momento cinco mortes e há cerca de três centenas de pessoas em vigilância por suspeitas de terem contraído a doença.

A campanha de vacinação começou na terça-feira, tendo, segundo as autoridades de saúde, sido vacinadas até ao momento pouco mais de duas centenas de pessoas.

Apesar de existir agora uma vacina contra o Ébola aprovada, Filomeno Fortes receia que a produção disponível não seja suficiente para conseguir travar uma eventual contaminação em larga escala.

O diretor do IHMT recordou que na epidemia anterior tinham sido utilizadas de forma experimental 350 mil doses da vacina contra o Ébola.

Em janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e os Médicos sem Fronteiras anunciaram que tinham as vacinas, produzidas pela Merk Sharp e licenciadas nos Estados Unidos, Europa e oito países africanos, em ‘stock’.

“A OMS está a enviar algumas doses destas vacinas, em pequena quantidade, para a Guiné-Conacri e a República Democrática do Congo”, disse Filomeno Fortes, considerando que também a vacina do Ébola é um exemplo de “contradição entre países mais ricos e mais pobres”.

O médico lembrou que quando se começou a utilizar experimentalmente a vacina, havia um acordo que previa a produção de pelo menos 500 mil doses que ficariam armazenadas para serem utilizadas a qualquer momento.

“Neste momento, não acreditamos que haja esta produção grande de vacinas”, disse, considerando que “se não houver uma boa estratégia combinada” e a doença se transmitir pelos países vizinhos “vai ser dramático”.

Filomeno Fortes antevê também dificuldades no “manejo dos doentes”, porque a pandemia de covid-19 veio interromper a produção de dois medicamentos experimentais que estavam a ser usados em doentes de Ébola e a “dar alguns resultados”.

O médico defendeu que “neste momento, os países têm de reforçar a vacinação dos grupos de alto risco com os técnicos de saúde a ser priorizados com as poucas vacinas que estão a ser enviadas”.

“Esta doença tem uma vantagem em relação à covid-19. Os doentes ficam tão debilitados que não se movimentam, é mais fácil fazer o controlo do foco e a transmissão não é tão rápida e tão intensa”, disse, assinalando, no entanto, que se trata de uma doença “muito mais mortal”.

A Guiné-Conacri registou até agora nove casos de Ébola, incluindo cinco mortes, e as 11.000 vacinas que chegaram, na terça-feira, ao país serão administradas aos doentes e seus contactos, num total de quase 400 pessoas.

O Governo guineense confirmou a deteção do Ébola no seu território em 13 de fevereiro passado e no dia seguinte declarou oficialmente o primeiro surto no país após a grande epidemia de 2014 e 2016 na África Ocidental.

Embora o caso zero seja desconhecido de momento, o ponto de partida é uma enfermeira de Gouéké que morreu entre 27 e 28 de janeiro e cujo funeral foi realizado em 01 de fevereiro, evento após o qual alguns participantes tiveram sintomas de Ébola.

Aquela que foi a pior epidemia de Ébola da história surgiu neste país em finais de 2013, foi declarada em 2014 e prolongou-se até 2016, matando 11.300 pessoas e infetando mais de 28.500, embora esses números, admite a OMS, possam ser conservadores.

Outro surto de Ébola foi confirmado em 07 de fevereiro no nordeste da República Democrática do Congo (RDCongo), onde as autoridades lançaram oficialmente uma campanha de vacinação contra a doença a 15 de fevereiro.

Sete pessoas adoeceram e quatro morreram, de acordo com os números oficiais.

O vírus Ébola é transmitido através do contacto direto com o sangue e fluidos corporais contaminados de pessoas ou animais.

Provoca febres hemorrágicas e pode atingir uma taxa de mortalidade de 90%.