Nos últimos dias de fevereiro, havia agitação no interior da igreja da Imaculada Conceição, na cidade iraquiana de Qaraqosh. Armados com baldes, mangueiras e vassoura, vários fiéis católicos limpavam o templo, deixando o piso a brilhar. A ocasião não era para menos: dentro de alguns dias, estaria ali o Papa Francisco.
Al Tahira #Church in #Baghdida or #Qaraqush being ready to welcome the #Pope. This church was burned and destroyed by #ISIS pic.twitter.com/vkMRHpoc46
— Sangar Khaleel (@SangarKhaleel) February 23, 2021
Contudo, esta enorme igreja no centro de Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque, nem sempre esteve assim. Entre 2014 e 2017, durante o período da ocupação de grande parte do norte do país pelo Estado Islâmico, o templo cristão foi dessacralizado e usado pelos jihadistas como armazém de medicamentos e hospital de campanha para os seus militantes.
Quando, em 2017, a coligação internacional liderada pelos Estados Unidos derrotou o Estado Islâmico e libertou grande parte da planície de Nínive, os jihadistas não fugiram sem incendiar e destruir grande parte do que restava das cidades e aldeias que haviam ocupado. Foi o que fizeram com a igreja da Imaculada Conceição, incendiada na quase totalidade.
O templo estava ainda parcialmente destruído quando o Observador visitou a região, no verão de 2018, para um conjunto de reportagens destinadas a traçar o perfil da minoritária comunidade cristã iraquiana no pós-ocupação.
É preciso recuar até 2011, ano da Primavera Árabe e do início da guerra civil na Síria, para perceber o início do drama no Iraque. Naquela altura, o Estado Islâmico, que era ainda um grupo militante e radical afiliado à Al-Qaeda, aproveitou o tumulto social na região para estabelecer o seu próprio reinado de terror. A partir de Raqqa, na Síria, o Estado Islâmico começou em janeiro de 2014 uma longa e violenta campanha de expansão territorial na clandestinidade.
Em poucos meses, o grupo terrorista já tinha alargado o seu território de modo considerável e chegado à fronteira com o Iraque. No verão de 2014, o Estado Islâmico tomou o controlo da cidade de Mossul, a histórica cidade bíblica que hoje é a capital da província de Ninawa, na planície de Nínive. Foi na grande mesquita de Mossul que, em 4 de julho de 2014, a primeira sexta-feira do Ramadão daquele ano, que o jihadista Abu Bakr al-Baghdadi anunciou ao mundo a oficialização do Estado Islâmico.
Num célebre discurso proferido no púlpito da mesquita, al-Baghdadi autoproclamou-se califa e exigiu a obediência de todo o mundo muçulmano.
A partir de Mossul, o Estado Islâmico impôs-se pelo terror em toda a planície, onde habita a maioria dos cristãos iraquianos e uma parte significativa dos (ainda mais minoritários) yazidis. Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque, a poucos quilómetros de Mossul, foi uma das primeiras a ser tomadas. Estima-se qu cerca de 150 mil cristãos tenham sido obrigados a fugir para o norte do país, nomeadamente para Erbil, a capital do Curdistão iraquiano. Muitos foram mortos, torturados ou escravizados pelos extremistas.
Qaraqosh é uma exceção no Iraque: ali, há muito mais igrejas do que mesquitas. A igreja da Imaculada Conceição, construída na década de 1930 e inaugurada em 1944, é uma das mais importantes. Todavia, não escapou à ocupação dos jihadistas. “Durante a ocupação, usaram-na como enfermaria para os soldados deles e como armazém de medicamentos“, contava em 2018 o padre Georges Jahola, pároco local.
As imagens do património cristão que o Estado Islâmico destruiu no Iraque
Durante uma visita à igreja destruída, foi possível ver ainda o símbolo do Estado Islâmico pintado com tinta preta. “Não há deus além de Alá e Muhammad é o seu profeta”, lia-se na mensagem. No chão, em frente ao altar, ainda era visível a marca da grande fogueira ateada pelos terroristas antes de fugirem da cidade.
Entre 2017 e 2018, depois da libertação da cidade, a Igreja Católica, através de campanhas internacionais e do trabalho árduo dos iraquianos, começou a reconstruir casas, escolas e igrejas naquela região. Qaraqosh foi uma das cidades mais afetadas: não restou um único edifício intacto.
Também no processo de regresso a casa dos cristãos, a igreja da Imaculada Conceição teve um papel especial. “Após a libertação, as pessoas pediram ao bispo para limpar a igreja. Ainda sem casa, queriam que houvesse missa aqui”, lembrou em 2018 o padre Jahola. “Uma das primeiras coisas que me pediram, ainda antes de pensarmos na reconstrução das casas, foi que celebrasse uma missa na igreja.”
Assim foi. Ainda com a igreja enegrecida do fumo, com as mensagens de terror nas paredes e com a estrutura parcialmente destruída, o sacerdote improvisou um altar, colocou algumas cadeiras de plástico no interior do templo e celebrou a missa. Em 2018, o padre confidenciou estar a equacionar deixar na igreja algumas das marcas da destruição causada pelo Estado Islâmico, como memória do que ali sucedeu.
Mais de quatro anos depois, o Papa Francisco foi à igreja da Imaculada Conceição para um encontro breve com a comunidade cristã de Qaraqosh, durante a sua viagem inédita ao Iraque. Depois de uma celebração em Mossul, o líder católico dirigiu-se à cidade de Qaraqosh para comemorar a reconstrução dos templos — e da fé.
“Olhamos à nossa volta e vemos os sinais do poder destruidor da violência, do ódio e da guerra. Quantas coisas foram destruídas! E quanto tem de ser reconstruído! Este nosso encontro demonstra que o terrorismo e a morte nunca têm a última palavra”, disse Francisco aos fiéis, reunidos em grande número na igreja, já reconstruída.
“Mesmo no meio das devastações do terrorismo e da guerra podemos, com os olhos da fé, ver o triunfo da vida sobre a morte”, acrescentou. “Queridos amigos, este é o momento de restaurar não só os edifícios, mas também e em primeiro lugar os laços que unem comunidades e famílias, jovens e idosos.“