A carrinha que a Fundação Calouste Gulbenkian disponibilizou para ajudar na vacinação de doentes acamados em Arouca começou esta quarta-feira o seu trabalho, substituindo-se aos táxis que antes levavam as equipas médicas a domicílios dispersos por 329 quilómetros quadrados.
É essa a grande vantagem da viatura que a Gulbenkian disponibilizou ao Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Santa Maria da Feira e Arouca para apoiar essa estrutura do distrito de Aveiro num projeto-piloto de vacinação domiciliária contra a Covid-19, mediante uma parceria que, no total, disponibilizará ao Estado 50 carrinhas para operar em diversas regiões do país.
Em Arouca, que recebeu um dos primeiros cinco veículos cedidos para o efeito, a viagem inaugural começou às 9 horas desta quarta-feira na Unidade de Saúde Familiar (USF) de Escariz, depois de a enfermeira Ana Margarida Fernandes equipar a carrinha com a mala que transportava seis vacinas da Pfizer, que, independentemente da idade ou condição física do utente, é a marca administrada ao domicílio por ser a única cujo transporte não obriga a acondicionamento frigorífico.
Na prática, esta situação da carrinha quase não muda nada em relação ao que fazíamos antes, porque já visitávamos estes doentes em casa e todos os anos lhes damos a vacina da gripe, por exemplo. A carrinha até complica um bocado o nosso trabalho, porque, como tem que ser partilhada com outros centros de saúde do concelho, não basta acabar o serviço e estacionar, temos que ver onde é que ela vai andar no dia seguinte e organizar a mudança [de chaves]”, explica.
A principal vantagem da viatura é que “assim se poupa nos táxis“, que até aqui eram o meio utilizado para visitar os cerca de 100 utentes acamados do município. “A despesa não devia ser pouca, considerando que o táxi nos vinha buscar, fazia 20 quilómetros até casa de um doente, ficava à nossa espera, depois levava-nos a outro, voltava a esperar por nós, etc.”, conta a enfermeira.
Considerando que a inoculação contra a Covid-19 exige que a equipa médica aguarde 30 minutos em cada domicílio para acompanhar o recobro do utente, a fatura em táxis seria agora “ainda maior”. Segundo os cálculos de um serviço de táxis local, representaria “5.000 a 6.000 euros por mês“.
António Alves, que dirige o ACES Feira Arouca e esta manhã foi acompanhando o circuito de vacinação domiciliária pelo telefone, concorda que essa poupança financeira é a grande mais-valia da “generosidade” da Gulbenkian. “A carrinha não vem fazer nada que nós já não fizéssemos sempre, mesmo antes da pandemia; vem é agilizar um bocadinho o processo, porque nós nunca temos carros suficientes para as necessidades e isto alivia-nos a despesa com os táxis, que, além de serem mais caros, não são tão seguros, por misturarem circuitos de saúde com circuitos normais de transporte”, afirma.
Palmira Rosa Soares ignora esses detalhes. Vive em Belide com a mãe, que tem 94 anos e está acamada há cinco na sequência de um acidente vascular cerebral, e confessa: “Eu nem reparei em carrinha nenhuma. Os portões estavam fechados, os médicos entraram e eu só fui dizer à minha mãe ‘olha que está aí o senhor doutor'”.
No seu cadeirão ortopédico, Maria Clara Joaquina Rosa, é mesmo assim o nome completo da nonagenária, deixou-se ficar de olhos fechados durante a inoculação e não fez conversa com ninguém. “Ela está muito desligada. Não reage, não quer saber de nada“, observa a filha.
Entre a lareira, a janela e a televisão, foi só mais tarde que a doente falou, quando Palmira lhe perguntou se a injeção doera. “Não”, respondeu a idosa, que foi convicta ao dizê-lo, mas logo depois voltou a um silêncio quase imóvel. A filha, no entanto, mostrava-se aliviada: “Ao menos assim isto está resolvido e foi cá em casa, como fizeram com a vacina da gripe. Se tivéssemos que levar a minha mãe ao centro de saúde, a carregá-la em peso, ela ainda nos caía e partia uma perna, e depois era mais essa aflição“.
Catarina Martins também está mais tranquila, depois de o avô, Júlio Joaquim Santos, ter sido inoculado esta manhã. Quando a equipa médica chegou a Mansores, a jovem não acordou o avô, que “tem 93 anos e está muito debilitado”, mas, ainda assim, o idoso mostrou-se sensível: “Acordou com a pica! Passado um bocado já não se lembrava de nada, mas naquele momento queixou-se por o terem acordado!”.
Após uma infeção respiratória que, no início do ano, lhe afetou a lucidez, Júlio só tem convivido com a neta e os pais dela, e a restante família tem-se mantido afastada, para o proteger. “Até janeiro ele ainda sabia o que se passava no mundo porque nos via de máscara e sabia que era por causa da Covid, mas agora deixou de ter noção e, se calhar, ainda bem, que assim sofre menos”, conta Catarina.
A expectativa de filhos, netos e bisnetos, contudo, é que, estando Júlio já vacinado, todos o possam rever em breve. E depois daquela fase “muito triste” em janeiro, Catarina sabe a importância do reencontro: “Ele pouco fala e está sempre sonolento, mas, quando ficou doente, toda a gente teve medo que lhe acontecesse alguma coisa e que não se pudessem despedir dele. Agora já cá podem passar um bocadinho. Há pelo menos esse consolo”.
Segundo um balanço da agência noticiosa francesa AFP, a pandemia de Covid-19, que teve origem no vírus SARS-CoV-2 e registou os primeiros casos em dezembro de 2019, já provocou mais de 2,7 milhões de mortes em todo o mundo, em resultado de 120,6 milhões de infetados.
Em Portugal, de acordo com o boletim mais recente da Direção-Geral da Saúde, a Covid-19 já causou 16.707 óbitos entre 814.897 casos de infeção confirmados.