Desigualdade, egoísmo, isolacionismo, individualismo, foram algumas das notas que Marcelo Rebelo de Sousa decidiu deixar na mensagem transmitida na sessão de abertura da conferência sobre o reforço do papel da União Europeia na saúde global que decorre ao longo desta quinta-feira. Sem intenção de dourar a pílula, o Presidente da República reconheceu os pontos de avanço e o esforço feito pela União Europeia, mas também lembrou falhas e apontou o caminho: só com uma “verdadeira União Europeia da saúde” é possível à União Europeia “ter uma posição de liderança em termos de saúde global”.
“Apesar de esforços coletivos, houve muito egoísmo, houve muito isolacionismo, houve muito individualismo e assistiu-se ao acentuar de desigualdades e de diferenças entre pessoas, funções, territórios, povos”, começou por apontar o Presidente da República para depois atalhar para o que considera necessário: “a revisão do pacote legislativo neste domínio é um passo decisivo na construção de uma verdadeira União Europeia da saúde, que tem de ir muito mais longe em termos de coordenação e, sobretudo, de liderança em futuras emergências de saúde pública”.
Antes, os participantes já tinham ouvido a intervenção da vice-secretária-geral das Nações Unidas Amina Mohammed com foco nos mais vulneráveis que, considera, foram os mais atingidos pela pandemia. “A crise [provocada pela pandemia do SARS-CoV-2] exacerbou as desigualdades pré-existentes em todo o mundo e atingiu os mais vulneráveis de forma especialmente dura”, apontou Amina Mohammed presente na conferência em substituição de António Guterres.
Com elogios à postura da União Europeia a responsável apontou o atual momento como “de balanço para todo o mundo”. “Agora deve estar claro para todos que, sem garantir o direito de todas as pessoas à saúde, nunca teremos sociedades justas“, disse depois de Ursula Von der Leyen ter apontado que a escolha da UE foi “construir uma aliança para criar a iniciativa global para que todos os países tenham acesso a testes, medicamentos e vacinas”.
“É tempo de olhar em frente, precisamos de mais doações, temos que reforçar a capacidade de produzir vacinas. Este trabalho começa na Europa, onde estamos a trabalhar com as farmacêuticas para aumentar capacidade de produção”, apontou Von der Leyen frisando que “as mutações de outros países e continentes podem destruir o que foi alcançado até ao momento” daí que seja necessário distribuir o maior número de vacinas possível em todo o mundo.
Também Tedros Ghebreyesus, Diretor-Geral da Organização Mundial da Saúde, focou o discurso na sessão de abertura no mecanismo Covax, afirmando que permite “dar esperança a todos, não só a alguns”, mas deixando o alerta de que “o fosso está a crescer em relação às vacinas distribuídas nos países desenvolvidos e nos pais pobres”.
Já Marta Temido, no papel de anfitriã da sessão de abertura desta conferência, frisou que “nenhum Estado está seguro até que todos estejam”, notando que a diplomacia da saúde “não é uma opção”, mas sim “uma necessidade compartilhada”uma vez que os desafios da saúde “transcendem fronteiras”.
“A diplomacia da saúde não é uma opção dos Estados. Em vez disso, é uma necessidade compartilhada. Os desafios da saúde global transcendem fronteiras e também as clássicas divisões norte-sul, este-oeste, expondo as limitações das abordagens segmentadas”, assinalou a ministra da Saúde.“A UE esteve e continuará empenhada” no objetivo da solidariedade além-fronteiras, reforçando “a influência fortalecedora da União na saúde global e também na diplomacia da saúde”.
Outro dos ministros portugueses que participou na sessão de abertura foi Augusto Santos Silva que destacou a necessidade de um reforço dos sistemas de saúde pública e de cooperação global. Santos Silva diz que é preciso conseguir recursos e sustentabilidade em assuntos ligados à Saúde, frisando que o assunto é “um dos maiores tópicos” da presidência portuguesa da União Europeia.
“Muito tem de ser feito e muito está a ser feito”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, frisando a importância na promoção de medidas no sentido de se alargar o número de testes de diagnóstico à Covid-19 e na distribuição de vacinas.
“O que fazemos na Europa é importante, mas o mais importante é o que fazemos no mundo, só juntos podemos combater a pandemia”, disse Santos Silva referindo-se à colaboração com organizações internacionais como a ONU e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
“A influência da União Europeia na saúde global deve ser levada de uma forma mais alargada e ambiciosa. A União Europeia deve ter um papel mais ativo”, disse a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, que falou durante a cerimónia de encerramento da Conferência sobre Saúde Global, da Presidência Portuguesa da União Europeia. Graça Freitas também defende o fortalecimento da OMS.
A solidariedade internacional e equidade no acesso às vacinas são os principais desafios de 2021, defendeu a diretora-geral da DGS, reforçando o papel que a União Europeia pode ter, tanto para os Estados-membros como a nível internacional. Graça Freitas destacou a necessidade de haver uma maior consistência na atuação da UE e dos Estados-membros e maior financiamento da saúde.
“Entender a natureza multisectorial da saúde [economia, segurança, desenvolvimento] é crucial para a adoção de uma estratégia de saúde eficaz e todas as políticas devem também incluir uma dimensão relacionada com a saúde”, disse Graça Freitas.
A diretora-geral da Saúde terminou com a mesma ideia exposta pela ministra Marta Temido: “A diplomacia na saúde não é uma opção dos países, é, em vez disso, um bem comum”.
Para encerrar a conferência, António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde, destacou o papel de Portugal em termos de saúde global. “A saúde global tem sido um assunto de extrema importância para o nosso país há algum tempo. Não apenas em termos de investigação e desenvolvimento, mas também em termos de cooperação internacional com os países lusófonos. Aconteceu com o ébola e está a acontecer com a Covid-19.”
Agora, diz o secretário de Estado, é preciso que os Estados-membros da UE se unam na preparação dos próximos desafios na área da saúde e que tornem os sistemas de saúde mais bem preparados e resilientes para enfrentarem os desafios presentes e futuros. “Vamos continuar à procura de novas soluções globalmente, promovendo mais resiliência nos cidadãos instituições, protegendo os mais vulneráveis e garantindo o acesso à saúde para todos”, concluiu o secretário de Estado.
ONU pede “ação política concertada” na disponibilização de vacinas
A alta-comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, apelou esta quinta-feira a uma “ação política concertada” na disponibilização de vacinas a todos e à definição de “um enquadramento” para a cobertura global de saúde.
Michelle Bachelet, que intervinha numa sessão virtual sobre liderança na saúde global, começou por assinalar que “a pandemia de Covid-19 ensinou muito sobre o valor do investimento nos direitos humanos“.
Por um lado, mostrou que, “em muitas regiões do mundo, os mais vulneráveis, incluindo os que pertencem a minorias étnicas e povos indígenas, têm mais probabilidades de morrer de Covid-19 e sofreram os maiores impactos socioeconómicos“, e, por outro lado, que “o impacto negativo poderá perdurar durante gerações”, deixando “as pessoas pobres e vulneráveis reduzidas a ainda pior pobreza”, ressalvou.
A alta-comissária das Nações Unidas considerou então que as desigualdades provocadas pela pandemia deixam “cada vez mais pessoas para trás“, acabando por “privar a sociedade de um contributo pleno, prejudicando-nos a todos”. Essas desigualdades — “históricas dentro e entre países” — estão “agora a ser repetidas no âmbito da vacinação”, apontou, instando a uma “ação política concertada para disponibilizar vacinas a todos, em todos os lugares”.
Daí que a cobertura universal de saúde seja uma “prioridade fundamental”, pois “as sociedades mais saudáveis permitirão um desenvolvimento sustentável”, enquanto “maus resultados ao nível da saúde limitam as capacidades de se reforçar a resiliência”, notou.
A responsável destacou, de seguida, a importância da Agenda de 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, nomeadamente da meta 3.8, que “pede a cobertura universal de saúde“, incluindo “proteção contra riscos financeiros, acesso a serviços de saúde essenciais e básicos, e acesso a medicamentos e vacinas essenciais e a um preço comportável”.
Alertando para o facto de “mais de metade das pessoas vivas terem pouco ou nenhum acesso a serviços de saúde fundamentais” e que, por isso, “há pessoas em muitos países que continuam a lutar simplesmente para sobreviver”, Bachelet apontou a “discriminação”, a “nacionalidade” e as “migrações” como “razões que explicam a falta de acesso a cuidados de saúde”.
Bachelet disse que “56% da população rural mundial, a maior parte dessa população em África, tem falta de acesso a serviços de saúde em comparação com a população urbana“, acrescentando que, “em 2013, a Organização Mundial de Saúde [OMS] estimou que 930 milhões de pessoas gastavam mais de 10% do rendimento do lar com despesas de saúde e 210 milhões gastam mais de 23%, o que é um fardo enorme”.
Por isso, a alta-comissária apela à definição de “um enquadramento para a saúde, com acesso a serviços para a reprodução sexual, a saúde mental, entre outros”, pois, apesar de já haver “compromissos e deliberações”, ainda “há uma necessidade urgente de vontade política“.
Antes da pandemia de Covid-19, os direitos sociais e económicos eram muitas vezes negligenciados devido aos custos. Quando as consequências se tornaram evidentes, começaram a ver-se pacotes de estímulo para mitigar o impacto socioeconómico, ou seja, quando é preciso encontra-se o dinheiro necessário”, argumentou.
Nesse sentido, Michelle Bachelet pede aos Estados-membros das Nações Unidas que haja “cooperação técnica”, a fim de “partilharem experiências, conhecimento e garantirem o acesso a recursos que permitam garantir o direito à saúde em todos os lugares”.
“A pandemia mostrou-nos que os cuidados de saúde e a proteção social são não só essenciais, mas permitem um enorme retorno ao evitar ainda mais dor económica”, frisou, encorajando o bloco comunitário a “investir mais na área da saúde, internamente e no estrangeiro”.
A alta-comissária apelou, por fim, a uma reflexão “sobre a institucionalização” nos sistemas de saúde para que estes contemplem, além dos idosos, a “saúde mental e dos deficientes”, incluindo as pessoas de minorias étnicas e os migrantes. “Encorajo-vos a salvaguardar o envolvimento de todas as partes interessadas, na conceção e implementação deste esforço. As pessoas têm de participar de modo pleno na definição de políticas que poderão afetar as suas vidas”, concluiu.
Atualizado às 20h20