O relato em “discurso direto” daqueles que conhecem, trabalharam ou se digladiaram politicamente com António Guterres é a linha condutora da nova biografia sobre o homem “político e humanitário” que, em 2017, chegou ao topo das Nações Unidas.

O primeiro passo desta biografia autorizada, a ser lançada na próxima terça-feira pela editora Casa das Letras, foi dado há quase cinco anos por Pedro Latoeiro e Filipe Domingues – os autores estreantes desta obra -, quando António Guterres foi aclamado como o nono secretário-geral das Nações Unidas e se tornou, a 01 de janeiro de 2017, o primeiro português a ocupar o gabinete de líder na sede da organização, em Nova Iorque.

“Por razões profissionais, distintas um do outro, estávamos a seguir esse processo com particular atenção e apercebemo-nos de que ninguém conhecia verdadeiramente nem a história de vida e, muito menos, o pensamento político e até humanitário de António Guterres”, tanto dentro como fora de Portugal, recordou à Lusa Pedro Latoeiro, revelando que esta biografia terá uma edição internacional, processo que está a ser negociado em vários países.

A ideia do livro acabaria por avançar e o resultado é “O Mundo Não Tem de Ser Assim”, uma obra que conta a história de Guterres desde o despertar da sua consciência social (associada a valores religiosos) e política e que percorre vários momentos da sua carreira.

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A liderança do Partido Socialista (PS), os seis anos e cinco meses de governação (1995-2002) enquanto primeiro-ministro português, a missão de 10 anos à frente do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) e a eleição para a liderança da Organização das Nações Unidas (ONU) são alguns desses momentos.

“A nossa perspetiva e o nosso objetivo era conseguir um relato universal, pormenorizado”, referiu, também em declarações à Lusa, Filipe Domingues.

Esta biografia, que se afasta de “análises académicas, de juízos de valor ou de ideias preconcebidas”, pretende dar, através das histórias e dos episódios relatados, uma liberdade ao leitor para refletir sobre a personalidade de António Guterres e sobre o tipo de decisões assumidas ao longo do seu percurso, que não está inseto, segundo frisou o co-autor, de críticas, erros ou de contradições.

Ao longo de cerca de 700 páginas, o retrato da vida e do pensamento político de Guterres é traçado pelo “discurso direto” de antigos chefes de Estado e de Governo, diplomatas, altos funcionários da ONU ou amigos do ex-primeiro-ministro português.

Figuras nacionais e internacionais que se disponibilizaram a ser entrevistadas por Filipe Domingues e Pedro Latoeiro ao longo de vários meses de um “extensíssimo trabalho” de recolha.

O próprio secretário-geral da ONU conversou presencialmente com os autores em quatro ocasiões e deu acesso ao seu arquivo fotográfico pessoal.

Eu nunca escreverei as minhas memórias, não tomo notas de nada do que se passa, não tenho diário e deitei fora todos os papéis, o que tem uma vantagem, cada dia pensa-se sempre para a frente, não para trás”, diz Guterres, atualmente candidato a um segundo mandato de cinco anos (2022-2026) como secretário-geral da ONU, citado no livro.

De Nova Iorque a um campo de refugiados na Jordânia, passando também por Lisboa, Paris ou por Genebra, os autores fizeram mais de 120 entrevistas a personalidades como os antigos Presidentes Fernando Henrique Cardoso e François Hollande, o ex-presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker, o antigo chanceler alemão Gerhard Schröder ou a ex-embaixadora norte-americana junto da ONU (da administração Obama) Samantha Power.

Já entre as personalidades nacionais, figuram, entre outros, os nomes dos ex-ministros Paulo Portas, Jorge Coelho e António Vitorino, dos embaixadores Francisco Seixas da Costa e João Lima Pimentel ou do deputado do PS Sérgio Sousa Pinto.

Para os dois autores, esta biografia também vai ao encontro de algumas das questões mais prementes da atualidade e que marcam o caminho percorrido por Guterres, como os direitos das minorias e os fenómenos migratórios, o terrorismo globalizado, o combate às desigualdades, o diálogo inter-religioso, o financiamento ao desenvolvimento ou a própria reforma das Nações Unidas.

Esperam igualmente que o livro consiga “sensibilizar e chamar a atenção para o trabalho insubstituível que as Nações Unidas desempenham hoje”, num momento marcado, entre outros pontos de tensão, por “um retrocesso mais ou menos globalizado na agenda dos direitos humanos” e por “uma crise do multilateralismo”.

Sublinhando que esta obra “totalmente independente e totalmente financiada por meios próprios” não pretende ser “um trabalho laudatório”, os dois autores destacaram à Lusa aspetos que retiveram durante a elaboração do livro.

Um deles, de acordo com Pedro Latoeiro, foi o prestígio que Guterres, enquanto Alto-Comissário para os Refugiados, granjeou “em toda à parte” e junto de inúmeros funcionários humanitários, em particular pela forma como moldou e deu visibilidade ao ACNUR, que atravessava uma “profunda crise financeira e até de moral”.

Outra nota destacada é a unanimidade sobre a “elevada craveira intelectual” de Guterres.

“Todas as figuras com quem falámos, até os próprios adversários políticos aqui em Portugal, reconhecem isso, que é de facto uma figura intelectualmente superior”, frisou, por sua vez, Filipe Domingues.

A biografia revela igualmente documentos inéditos cedidos, por exemplo, pela família presidencial norte-americana (Bill e Hillary) Clinton e pela Fundação de Fernando Henrique Cardoso, documentos esses que mostram os “bastidores” de acontecimentos e de relações que acabaram por ser construídas no decorrer dos anos, indicaram os dois autores, atualmente ligados à área da diplomacia e ambos com percursos que passaram pelo jornalismo.

Entre os vários episódios relatados no livro estão, por exemplo, as manobras de bastidores relacionadas com a candidatura portuguesa ao posto de secretário-geral da ONU, a relação com as duas grandes potências mundiais Estados Unidos e China ou os “tensos” Conselhos Europeus durante a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) no primeiro semestre de 2000.

Esses conselhos foram marcados pela preparação do alargamento do bloco comunitário a leste, processo que era defendido “por convicção e por estratégia geopolítica”, segundo recordam os autores, pelo então primeiro-ministro António Guterres.

O período focado na biografia termina com a eleição, em 2016, do controverso Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, o principal Estado financiador das Nações Unidas, e a tomada de posse como secretário-geral.