Foi a notícia que marcou o fim de semana: centenas de adeptos do Manchester United invadiram o relvado de Old Trafford, horas antes do apito inicial do jogo contra o Liverpool, e acabaram por provocar o adiamento da partida. Uma partida que até era importante para as contas do título, já que uma derrota dos red devils significava desde logo a conquista da Premier League por parte dos rivais da cidade, o Manchester City. O objetivo dos adeptos, contudo, não estava relacionado com isso. O propósito era acrescentar um capítulo a uma história de resistência e crítica que dura desde 2005 e que parece ter chegado a um momento capital.
Quando os planos da Superliga Europeia caíram por terra, depressa se percebeu que o Manchester United seria, de entre os 12 clubes fundadores, aquele que maiores consequências institucionais acabaria por ter — para lá da demissão do vice-presidente Ed Woodward, que aconteceu ainda durante a polémica da nova competição. Apesar de os adeptos do Arsenal também terem exigido a saída de Stan Kroenke, apesar de os adeptos do Liverpool também estarem agora descontentes com a atuação do Fenway Sports Group, a verdade é que o sim dado pela família Glazer aos planos da Superliga veio recuperar uma insatisfação antiga entre os adeptos dos red devils. A família norte-americana, que em 2005 adquiriu o clube num negócio gigantesco que catapultou o valor do emblema para cerca de 800 milhões de libras, nunca foi bem-vinda, nunca foi bem recebida e nunca foi interpretada como parte do United. A Superliga, tal como provaram os acontecimentos mais recentes, foi a gota de água.
Recuando no tempo, Malcolm Glazer começou por comprar 2,9% do Manchester United em março de 2003, aumentando essa fatia no final do ano. Em outubro de 2004, os Glazer já tinham quase 30% do clube e em maio de 2005, já com 57% das ações, lançaram uma proposta de aquisição formal. No mês seguinte, asseguraram 98% das ações e tomaram controlo do histórico emblema inglês. Os protestos dos adeptos começaram aí, há mais de 15 anos: na primeira visita que fizeram a Old Trafford já como donos, em julho de 2005, os norte-americanos tiveram de ser escoltados numa carrinha policial para escaparem às manifestações dos apoiantes. Nessa altura, até alguns dos jogadores tomaram a decisão de se colocar ao lado dos adeptos e contra os novos proprietários — um deles foi Ole Gunnar Solskjaer, agora treinador da equipa principal.
https://twitter.com/IanBroughall/status/1388891918940221446
“Acho que é importante que o clube permaneça nas mãos certas. Estou absolutamente do lado dos adeptos e acho que o clube estava em boas mãos. Sou adepto do United e só quero o melhor para o futuro do clube”, disse, na altura, o avançado norueguês. As declarações totalmente claras e nada ambíguas regressaram para o assombrar na semana passada, quando um grupo de adeptos invadiu o centro de treinos do clube para perguntar a Solskjaer, agora treinador, para onde é que tinham ido as convicções de 2005. “O Joel adora o clube”, limitou-se a responder, referindo-se ao co-proprietário do Manchester United que assumiu a liderança dos negócios da família depois da morte do pai, Malcolm, em 2014.
O que acaba por distinguir os adeptos do Manchester United dos adeptos de todos os outros clubes fundadores da Superliga é o facto de os adeptos do Manchester United não terem ficado surpreendidos. Para eles, a atitude acaba por sublinhar a ideia de que a família Glazer só se preocupa com lucro e dinheiro e não tem qualquer relação afetiva com um clube que tem quase 150 anos de história. E parte dessa linha de argumento justifica-se com os contornos da aquisição: há 16 anos, a enorme operação deixou o Manchester United com quase 800 milhões de libras em dívidas, quando o clube não devia qualquer valor quando foi comprado. Na ótica dos adeptos, a família Glazer deveria ter usado a própria fortuna. Atualmente, o Manchester United tem 445.5 milhões de libras em dívidas, sendo que a BBC estima que todo o negócio da aquisição — entre custos financeiros, juros e dividendos — custou ao clube algo como mil milhões de libras.
Apesar do descontentamento ter sido sempre constante, entre elogios a jogadores como Roy Keane e Gary Neville, que sempre se mostraram contra os proprietários, e críticas a Alex Ferguson, que sempre defendeu os norte-americanos, a verdade é que as manifestações mais públicas de desagrado acalmaram com a conquista de três Premier Leagues consecutivas (2007, 2008 e 2009) e da Liga dos Campeões (2008). Em 2009/10, quando o clube perdeu a liga inglesa para o Chelsea, as críticas regressaram e nasceu um movimento: a “Red Issue”, uma revista mensal dedicada aos adeptos do Manchester United, instou todos os apoiantes a usarem verde e amarelo. Porquê? Porque o verde e o amarelo eram as cores do Newton Heath, o clube fundado em 1878 que em 1902 deu lugar e início ao que acabou por tornar-se o Manchester United.
Ora, este domingo, nos protestos junto a Old Trafford na antecâmara do que seria, originalmente, um dos jogos mais importantes da época, o verde e o amarelo voltaram a aparecer. Em potes de fumo, em cachecóis, em tarjas e camisolas — duas cores que quase abafaram o habitual vermelho do clube e que elevaram as origens do emblema. Origens essas que, de acordo com os adeptos, contrastam e muito com os atuais proprietários.
Ainda assim, tem de existir o contraditório. A família Glazer é responsável pelo aumento extraordinário que o Manchester United teve em receitas comerciais nos últimos 16 anos, apostando numa abordagem regional que foi depois repetida pelos clubes de dimensão semelhante. Os norte-americanos introduziram um plano comercial que se distinguiu de tudo o que se existia no futebol europeu até então e fecharam acordos de patrocínio muito valiosos com marcas como a Adidas e a Chevrolet. É justo dizer que os Glazer são responsáveis por uma parte significativa do aumento dos lucros do clube no passado recente e que o que acabam por retirar daí é apenas uma pequena percentagem.
Algo que não convence os adeptos e que continua sem convencer Roy Keane e Gary Neville, dois antigos capitães do Manchester United e dois nomes históricos em Old Trafford — que, este domingo, não esconderam que concordavam com o descontentamento generalizado da massa associativa. “Tem existido uma acumulação de tensão, seja pela venda de bilhetes, pela falta de comunicação, pelas coisas que acontecem nos bastidores. A liderança do clube não tem sido boa o suficiente. Quando os adeptos olham para os donos, sentem que é tudo sobre fazer dinheiro. Os adeptos do United olharam para os Glazer e sentiram que já chega. Estão a fazer isto porque adoram o clube. Algumas pessoas podem não concordar, mas às vezes é preciso tomar uma atitude para que os outros reparem. Isto vai espalhar-se pelo mundo inteiro e, espero eu, os donos do Manchester United vão sentar-se e ter atenção. Estes adeptos estão a falar muito a sério e isto é apenas o início, posso garantir”, começou por dizer o irlandês aos microfones da Sky Sports.
“Isto é uma consequência das ações dos donos do Manchester United há duas semanas. Existe uma desconfiança geral e um desagrado em relação aos donos, mas ninguém estava a protestar há duas ou três semanas. Há um descontentamento enorme. Estão a dizer que já chega. A família Glazer tem sido resiliente e teimosa por muitos anos. Acho que estão a ter dificuldades para encontrar as exigências financeiras de que este clube precisa e já as têm há algum tempo. Se pensarmos, quando pegaram no clube, tinham o melhor estádio do país, talvez um dos melhores da Europa; o melhor centro de treinos do país, talvez o melhor da Europa; a equipa estava a chegar regularmente aos quartos de final, às meias-finais e à final da Liga dos Campeões e a ganhar a Premier League recorrentemente. Agora, o estádio está ferrugento e a apodrecer. O centro de treinos nem sequer está no top 5 deste país. Não vão a uma meia-final da Liga dos Campeões há 10 anos e não ganham a liga há oito”, acrescentou Neville, que só deixou o clube em 2011.