Um estudo jurídico de um conhecido penalista defende que os prazos de prescrição dos casos de corrupção só podem iniciar-se após o recebimento do último suborno. O que contraria claramente a interpretação legal que o juiz Ivo Rosa utilizou na decisão instrutória da Operação Marquês para declarar a prescrição da esmagadora maioria dos crimes de corrupção imputados aos alegados corruptores passivos (José Sócrates, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro) e aos alegados corruptores ativos (Ricardo Salgado, Joaquim Barroca, Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa).

O estudo é da autoria de Nuno Brandão, advogado e professor de Direito Penal na Universidade de Coimbra, e está incluído na obra “Corrupção em Portugal. Avaliação Legislativa e Propostas de Reforma” — coordenada por Paulo Pinto de Albuquerque, Rui Cardoso e Sónia Moura e que será publicada em maio pela editora da Universidade Católica.

Como Ivo Rosa fez cair uma a uma as acusações de corrupção. Contra José Sócrates e os outros arguidos

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É provável que o recurso que o Ministério Público apresentará sobre a decisão de não pronúncia do juiz Ivo Rosa venha a invocar este estudo para fundamentar a tese de que os crimes não prescreveram, como o procurador Rosário Teixeira defende. Para já, o Ministério Público requereu a nulidade da decisão de pronúncia de José Sócrates e Carlos Santos Silva.

A questão colocada na Operação Marquês

Para percebermos a importância deste estudo jurídico de Nuno Brandão é importante recuarmos à decisão instrutória lida pelo juiz Ivo Rosa no dia 9 de Abril. O titular da fase de instrução criminal da Operação Marquês considerou que a esmagadora maioria dos crimes de corrupção imputados a José Sócrates e aos restantes arguidos tinham prescrito em 2007.

Ivo Rosa começou por escrutinar os factos da acusação relativos ao Grupo Lena (um dos três grupos empresariais que terão alegadamente corrompido Sócrates) e declarou-os prescritos. Porquê? Porque, na interpretação legal do juiz, o crime de corrupção passiva consumou-se a 25 de janeiro de 2007, quando o prazo de prescrição para o crime de corrupção em vigor na data dos factos era de apenas cinco anos. O que faz com que os crimes estivessem prescritos desde 2012. O juiz de instrução fez a mesma leitura para os crimes de corrupção imputados ao Grupo Espírito Santo e ao grupo de investidores de Vale do Lobo.

Dando um exemplo prático para se perceber a dimensão do problema:

  • O político A fez um acordo de corrupção com o empresário B no dia 1 de janeiro de 2005 e combinaram que os subornos iriam ser pagos em tranches ao longo dos anos;
  • O político A recebeu a última tranche do pagamento no dia 1 de janeiro de 2015;
  • Quando é que se consumou o crime? No dia 1 de janeiro de 2005 ou no dia 1 de janeiro de 2015?

Como se vê, a questão tem uma grande importância na contagem do prazo de prescrição. A equipa do procurador Rosário Teixeira interpretou a lei no sentido de que o crime se consumou com o último pagamento do alegado suborno, invocando para tal um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que defende essa tese.

No caso dos alegados subornos pagos pelo Grupo Lena a José Sócrates, tais pagamentos — ou seja, a consumação material do crime — terão tido “lugar entre 28 de fevereiro de 2007 e 29 de março de 2011 (3.368.000,00€ quanto às casas da Venezuela), entre 25 de novembro de 2009 e 29 de março de 2011 (1.097.500,00€, relativo ao projeto Rede de Alta velocidade) e em 2012 e 2014 (1.249.999,93€, relativo aos negócios de Angola, Argélia e Venezuela)”, lê-se na decisão instrutória.

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O Ministério Público alegou ainda que, em termos de prazos prescricionais, aplica-se a este caso um prazo de 15 anos, visto que uma nova lei que entrou em vigor em abril de 2011 (a lei n.º 32/2010 de 2 de setembro) alargou tal prazo para todos os crimes de corrupção.

O juiz Ivo Rosa rejeitou esta interpretação com dois argumentos:

  • O acórdão do STJ invocado pelo procurador Rosário Teixeira foi declarado inconstitucional por violação do princípio da legalidade pelo acórdão n.º 90/2019 de 6 de fevereiro de 2019 do Tribunal Constitucional. O juiz disse mesmo que a interpretação do Ministério Público levaria “à criação de uma nova categoria de crime: a do crime de consumação continuada.”
  • A lei n.º 32/2010 de 2 de setembro não se pode aplicar a este caso, visto que o “alargamento do prazo não pode ser aplicado a processos atinentes a factos anteriores”. Assim, o prazo de prescrição é de cinco anos, segundo o juiz.

A importância das conclusões do estudo de Nuno Brandão

Sem se referir a este caso — e nunca poderia porque o estudo foi escrito antes da decisão instrutória de Ivo Rosa —, Nuno Brandão aborda os aspetos centrais da decisão que encerrou a fase de instrução criminal e retira outras conclusões.

Em primeiro lugar, o professor de Direito Penal faz uma diferença entre a consumação formal do crime de corrupção (o momento do acordo) e a consumação material (o recebimentos dos subornos acordados) para enfatizar que ambas são relevantes — não podendo o formalismo da primeira abordagem eliminar ou apagar a prática corrente de um acordo de corrupção poder corresponder a diversos pagamentos diferidos no tempo.

Assim, Nuno Brandão retira duas conclusões muito práticas:

  • Se no âmbito de uma investigação de um crime de corrupção passiva tiver sido detetada a “prática de atos de solicitação e/ou de aceitação de promessa de vantagem” mas sem que exista prova do recebimento de tal vantagem, então o crime pode consumar-se com a “aceitação” ou “solicitação” de “promessa de vantagem”;
  • Se, pelo contrário, existir prova de que da vantagem foi aceite e recebida pelo agente público, “então é nos momentos da perceção do suborno e da sua disponibilização que os factos de corrupção passiva e ativa se deverão ter por (materialmente) consumados.” Mais: se se “comprovar” o pagamento de subornos faseados no tempo, “a consumação material” da corrupção verifica-se “com a derradeira entrega”.

Assim, e partindo para a questão do início da contagem da prescrição, Nuno Brandão considera que “o efeito lógico” da relevância da consumação material do crime de corrupção faz com que o “prazo de prescrição relativo ao crime de corrupção respetivo” passará “a coincidir com a aceitação da disponibilização da vantagem, no caso da corrupção passiva, e com a entrega da vantagem, no caso da corrupção ativa. Havendo uma pluralidade de entregas, o momento relevante será o da disponibilização da última parcela do suborno”, lê-se no estudo de Brandão.

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O advogado analisou igualmente o acórdão do STJ invocado pelo Ministério Público para considerar que a contagem do prazo de prescrição dos crimes de corrupção de José Sócrates só se iniciará em 2014 — acórdão esse que o Tribunal Constitucional declarou que tinha violado a lei fundamental. O penalista concorda com a visão dos conselheiros do Supremo, pois “o quadro factual” de um caso de alegada corrupção de gestores judiciais e liquidatários envolvia “solicitações e promessas de vantagem foram seguidas por numerosas entregas de subornos”, logo o momento em que “a peita [suborno] é disponibilizada ao corrompido e é por este aceite, será este último momento o relevante para a contagem do prazo prescricional”.

Ou seja, e ao contrário do que o Tribunal Constitucional alegou no acórdão n.º 90/2019, o STJ não considerou que “o prazo de prescrição estaria sempre em aberto, por nem sequer se iniciar a sua contagem”. Pelo contrário, os conselheiros do tribunal que é considerado a cúpula do poder judicial entendeu, sim, e “acertadamente”, que o “prazo prescricional só corre a partir da data do pagamento dos subornos”. 

Daí que o professor de Direito Penal considere “altamente questionável o juízo de inconstitucionalidade” emitido pela 1.ª secção do Tribunal Constitucional por proposta do relator Cláudio Monteiro e que gerou uma votação em que a conselheira Fátima Mata Mouros votou vencida, como o Observador já noticiou.