As vacinas de ARN mensageiro (mRNA) mostraram, durante a pandemia de Covid-19, o seu potencial quer como tecnologia para o desenvolvimento rápido de novas vacinas, quer na eficácia contra o coronavírus SARS-CoV-2 — e com um nível de segurança elevado. Daí que os resultados dos ensaios clínicos da vacina alemã da Curevac, baseada na mesma tecnologia, tenham sido encarados como uma desilusão. A farmacêutica mantém, no entanto, o interesse em apresentar um pedido de aprovação à Agência Europeia de Medicamentos, disse o presidente executivo Franz-Werner Haas, citado pelo The New York Times.

As vacinas da Moderna e Pfizer/BioNTech atingiram níveis de eficácia nos ensaios clínicos, antes da introdução no mercado, superiores a 90% — muito acima dos 50% tidos como limite mínimo para o pedido de autorização de emergência. A vacina da Curevac, por sua vez, parece só ter 47% de eficácia nos resultados preliminares ainda não publicados, minando as expectativas de uma vacina mais barata e mais fácil de armazenar que as congéneres. O que pode justificar diferenças de eficácia tão grandes?

CureVac. Vacina dececiona nos ensaios clínicos, com eficácia de apenas 47%

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Ensaios clínicos com múltiplas variantes em circulação

A farmacêutica Curevac justifica o alegado insucesso da vacina com a grande número de variantes do SARS-CoV-2 em circulação e com as dificuldades acrescidas que isso causa aos ensaios clínicos. Dos 124 casos de infeção com o coronavírus que a empresa teve oportunidade de sequenciar (ler os genes), apenas 1% correspondia a uma variante com uma proteína igual à da vacina, segundo a Science Magazine.

No total, foram identificadas 13 variantes: 41% dos 124 casos corresponderam à variante Alpha, 21% à variante Lambda, que agora domina no Peru, e outros a variantes que ainda nem sequer estão bem estudadas. A Beta, uma das variantes que tem mais facilidade em escapar ao sistema imunitário, não foi, no entanto, detetada no ensaio clínico da Curevac.

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As vacinas da Moderna e da Pfizer/BioNTech, por sua vez, realizaram os ensaios clínicos numa altura em que havia menos variantes em circulação ou que as mesmas não apresentavam o mesmo grau de preocupação que se foi verificando com as variantes Alpha, Beta ou Gamma. Ainda assim, apesar de mostrarem uma eficácia um pouco menor, parecem continuar a proteger de doença Covid-19 grave e morte nas infeções com estas variantes.

As vacinas da Pfizer/BioNTech e Oxford/AstraZeneca, as mais usadas no Reino Unido — onde a variante Delta (indiana) é dominante, continuam a mostrar uma eficácia importante contra esta variante nas pessoas que receberam as duas doses. A eficácia de uma dose contra a variante indiana, no entanto, é muito menor.

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Grande parte das vacinas, como as de mRNA ou de adenovírus (as da AstraZeneca ou Janssen, por exemplo), têm por base a proteína spike (a que serve de chave ao vírus para entrar nas nossas células) da variante original ou próxima disso. Ora, muitas das mutações que têm ocorrido, especialmente nas variantes de preocupação, localizam-se precisamente nesta proteína — ou mudam pequenas partes da proteína (como se fizessem cirurgias plásticas localizadas) ou mudam mesmo a forma da proteína (por exemplo, imagine-se que um T se transformava num V).

Assim, os anticorpos neutralizantes desencadeados pela vacina colam-se bem às parte da proteína que se mantém iguais, mas não tão bem àquelas partes onde ocorreram alterações. Nestas porções modificadas, os anticorpos podem ser menos eficazes ou não funcionar de todo e isso será tanto pior se os anticorpos não conseguirem bloquear a área específica da proteína que desencadeia a infeção das células humanas (no fundo, os anticorpos têm de impedir que o dedo toque à campainha).

A segunda dose das vacinas ou uma vacina depois de uma infeção natural têm como função reforçar a resposta do sistema imunitário, que se vai tornando melhor a combater o vírus.

A tecnologia é a mesma, mas…

A Curevac, como a Moderna e a Pfizer, usa ARN mensageiro, com o código para fabricar a proteína spike na sua vacina. E podem até ter por base a mesma sequência genética (a mesma frase com as instruções de fabrico da proteína). Mas, no caso da Moderna e Pfizer, as moléculas de mRNA foram modificadas — uma das letras foi trocada —, para evitar que o organismo humano destruísse a molécula antes de o sistema imunitário ter tempo de preparar uma resposta.

Pelo contrário, a Curevac usa uma molécula de mRNA sem modificações (sem a tal troca de letra), o que pode até justificar os efeitos secundários adversos nas doses mais altas da vacina. O sistema imunitário, em vez de desencadear a produção de anticorpos, ativa outra forma de destruição das moléculas.

O mRNA não modificado ativa a primeira linha de defesa do sistema imunitário, a resposta inata, que impede as células de traduzirem a mensagem do mRNA contida na vacina. Aqui pode estar uma das explicações para o fracasso”, disse Isabel Sola, virologista no Conselho Superior de Investigações Científicas, citada pelo jornal El País.

Evitar efeitos secundários, pode ter reduzido a resposta do sistema imunitário

Outra das potenciais vantagens da vacina da Curevac pode ter-se revelado, na verdade, um dos motivos do seu fracasso: menos moléculas de mRNA por dose tornam a vacina mais barata, mas, potencialmente, menos eficaz. A ideia era também que com menos moléculas se reduzisse os potenciais efeitos secundários adversos, mas isso pode ter resultado num fraca ativação do sistema imunitário, admitem responsáveis da farmacêutica citados pela Bloomberg.

Um estudo anterior tinha mostrado que a vacina da Curevac (com 12 microgramas de mRNA) tinha conseguido gerar uma quantidades de anticorpos neutralizantes equivalente (ou inferior) à dos doentes que tinham recuperado da doença, refere a Bloomberg. As vacinas da Pfizer/BioNTech e Moderna (com 30 e 100 microgramas de mRNA, respetivamente), por sua vez, conduziram à produção de três vezes mais anticorpos neutralizantes, disse Sam Fazeli, analista da Bloomberg.

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Os veículos de transporte do mRNA são diferentes

Entre as grandes vantagens da vacina da Curevac, em relação às concorrentes, está o facto de poder ser conservada em frigoríficos convencionais durante meses em vez de exigir temperaturas muito baixas como a da Moderna e Pfizer/BioNTech. Assim, a vacina era vista como tendo potencial para ser distribuída nos países de menor rendimento ou sem condições para armazenar as outras vacinas.

Esta diferença está relacionada com o “veículo” — pequenas esferas de lípidos invisíveis a olho nu ou ao microscópio — que cada fabricante usa para transportar as moléculas de mRNA para dentro das células humanas (onde vão fabricar as ditas proteínas que os anticorpos vão aprender a reconhecer). As pequenas esferas da Curevac aguentam temperaturas mais altas, mas podem não conseguir cumprir tão tem a tarefa de transporte dentro do corpo humano.

A Curevac já está a trabalhar numa vacina de segunda geração com um veículo que seja mais estável no organismo. Os ensaio pré-clínicos com macacos mostraram que esta vacina poderia desencadear a produção de dez vezes mais anticorpos neutralizantes do que a primeira versão, refere a Science Magazine.