O Brexit funcionou como “uma vacina contra o desmembramento interno” da União Europeia (UE) porque o bloco comunitário “foi capaz de avançar em vários domínios mais rapidamente do que quando o Reino Unido era membro” e “as pessoas compreenderam que pertencer a UE não era um dado adquirido”, defendeu este sábado o embaixador João Vale de Almeida, à margem de uma conferência em Alcoutim organizada pela representação da Comissão Europeia em Portugal.

A saída do Reino Unido da UE, que se concretizou a 31 de janeiro do ano passado e cujo período transitório terminou a 31 de dezembro, levou os estados-membros a perceberam que era “importante reafirmar a solidez da UE porque a alternativa de cada país por si só, no quadro mundial atual, não é uma alternativa”, analisou embaixador da UE no Reino Unido. “Não vejo nenhum país a pedir para sair, não vejo nenhuma força política representativa a propor a saída da EU”, fez notar.

Ainda assim, na opinião do diplomata, há um “risco de clivagem entre um grupo de países e outro”. Esse risco surge perante extremismos ideológicos, perante “atuações nacionais que podem estar na margem da legalidade europeia” e face ao debate atual sobre os valores europeus e a interpretação que deles faz cada estado. Isto num contexto em que a Hungria  aprovou a 15 de junho uma lei a proibir a “promoção” da homossexualidade junto de menores de idade, o que conta com a compreensão da Eslovénia, que este semestre preside ao Conselho da UE.

“Somos uma comunidade de direito, o direito é primordial para a construção europeia. O debate está em curso em Bruxelas e nas capitais. É preciso evitar que desse debate surja uma clivagem excessiva entre os vários países. São tensões normais numa comunidade de 27 países, com vivências e contextos culturais diferentes. O que é preciso é manter o compasso em termos dos valores que são essenciais”, disse. “A pior coisa que poderia acontecer na EU, no contexto internacional pós-Afeganistão, seriam clivagens internas. Temos de manter uma coesão interna que nos permita ser um ator efetivo na escala internacional.”

EUA “já não querem ser os polícias do mundo”

João Vale de Almeida, de 64 anos, tornou-se a 1 de fevereiro de 2020 o primeiro embaixador da UE junto do Reino Unido. Falou em Alcoutim a convite da escola de verão Summer CEmp, iniciativa de quarto dias durante a qual cerca de três dezenas de estudantes e finalistas do ensino superior debatem em ambiente descontraído os problemas e o futuro da UE com decisores e líderes políticos convidados.

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No fim, aos jornalistas, o diplomata reafirmou outro aspeto do Brexit: um reforço da política comum de defesa e de segurança. “O Reino Unido privilegiava claramente a NATO. Tinha reticências em relação a um investimento acrescido na UE, reticências em relação à dimensão supranacional de uma política externa e de uma política de segurança e defesa”, logo, “a saída deles criou uma base mais consensual para se avançar mais nesta matéria e os dados estão aí a prová-lo. Nos últimos cinco anos, avançou-se mais na construção de uma dimensão externa da UE do que nos anos anteriores.”

Numa altura em que, segundo o embaixador, os EUA “já não querem ser os polícias do mundo”, a UE pode ganhar força como hardpower e não apenas como softpower, até porque nesta última vertente o bloco europeu já hoje é “uma potência”.

“Espero que tenhamos igualmente, senão ainda mais, uma Europa dos direitos humanos, uma Europa de valores, mas adicionalmente, em complemento, uma Europa que tenha mais capacidade de ação na frentes externa. Uma coisa não exclui a outra, as duas são necessárias. Uma UE que seja mais sólida nos direitos fundamentais, nos valores inscritos no Tratado da UE, será mais capaz de ser credível, ativa e eficaz na frente externa”, defendeu João Vale de Almeida.

Isto não significa que os estados-membros tenham de criar um exército comum, ao qual aliás o diplomata não é favorável. Aponta, sim, “maior cooperação entre as forças armadas dos vários países” e “investimento na defesa e na pesquisa e desenvolvimento tecnológico”, porque os novos conflitos serão “altamente tecnológicos e cirúrgicos”.

“Há sinergias a obter no seio da UE em termos de financiamento. Porque é que há de haver vários países a desenvolver projetos militares semelhantes em paralelo, com custos adicionais, quando se podia fazer uma gestão mais eficaz através da cooperação e dos instrumentos orçamentais europeus? São pistas novas que apareceram nos últimos cinco anos de forma mais ativa do que antes”, analisou.

“A vossa geração não pode esquecer que há uma diferença entre democracia e ditadura”, disse o embaixador aos estudantes que o escutaram em Alcoutim

Afeganistão dos talibãs “pode ser base de lançamento de ataques terroristas sobre o Ocidente”

A tomada do poder pelos talibãs no Afeganistão levou o embaixador a observar que “há países que não partilham os nossos valores, que têm uma agenda muito concreta contra os nossos interesses”. “Não podemos fazer prova de ingenuidade em relação ao que se está a passar e vai passar. O Afeganistão pode ser um teatro em que esse tipo de realidade se vai revelar. Não posso ser mais explícito do que isto.”

Adiante, acrescentou que a crise afegã é também uma questão de política interna da UE, porque “já não há separação de águas entre a frente interna e a frente externa”. E avisou: o Afeganistão dos talibãs “pode ser uma base de lançamento de ataques terroristas sobre o Ocidente e designadamente a UE”.

Questionado pelos jornalistas sobre este tema, garantiu que uma nova intervenção militar euro-americana “não está na agenda”. Disse-se “muito contente” com a ajuda humanitária europeia e as operações de resgate de civis e militares europeus e de afegãos que ao longo de anos colaboraram com as forças militares europeias.

João Vale de Almeida falou no fim da tarde de sábado no castelo de Alcoutim e fez-se acompanhar pela mulher. De pé, com descontração e vários momentos de humor, respondeu a inúmeras perguntas dos jovens presentes, que o ouviram com muita atenção. Apelou para que “não deixem outros tentar-se” pela ideia de que a democracia não serve ou que as ditaduras são atraentes. “A democracia é imperfeita, a gente não gosta de coisas perfeitas. A vossa geração não pode esquecer que há uma diferença entre democracia e ditadura.”

O Summer CEmp termina na segunda-feira. Este domingo à hora de almoço fala Mário Centeno, governador do Banco de Portugal.