À medida que Luísa Figueiredo, enquanto fala do trabalho que desenvolve, vai revelando preferências, desejos, hobbies e inclinações, emerge um padrão muito claro. A investigadora adora Nova Iorque pela diversidade de pessoas e de possibilidades. Ouve podcasts enquanto faz caminhadas para aprender coisas novas. Perde a noção do tempo quando se lança em pesquisas à procura de novos sítios para ir – seja um safari em África ou um novo restaurante no bairro. Um dos últimos livros que leu – e adorou – foi The Culture Map (de Erin Meyer, ed. PublicAffairs, EUA), sobre as diferenças culturais. Estas férias experimentou fazer rafting. Na vida, como na ciência, o que move a cientista de 45 anos é o desejo de conhecer o desconhecido.
Antes de chegar ao Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, em Lisboa, onde lidera desde 2009 o Laboratório de Biologia do Parasitismo, Luísa Figueiredo licenciou-se em Bioquímica na Universidade do Porto e doutorou-se em Parasitologia da malária no Instituto Pasteur, em Paris. Dedicou a tese de doutoramento ao Professor Melo, o seu mestre da escola primária. “Era uma pessoa que dava uma importância extrema ao rigor e acredito que a maneira como ainda hoje trabalho, a atenção que dou aos detalhes, resulta da formação que ele me deu”, explica a cientista.
Foi na “cidade que nunca dorme” que começou a estudar a doença do sono. Em 2003, no pós-doutoramento na Rockefeller University, em Nova Iorque, iniciou a investigação – que mantém até hoje – sobre a Tripanossomíase Humana Africana (THA), uma infeção causada pelo parasita tripanossoma, transmitido ao ser humano através da picada da mosca tsé-tsé (várias espécies do género Glossina). A doença – endémica em quase quarenta países da África Subsariana – é geralmente conhecida como doença do sono porque quando o sistema nervoso central é afetado, um dos sintomas mais marcantes é a sonolência durante o dia e a insónia à noite.
A doença do sono em humanos está num valor historicamente baixo: dos 37 mil novos casos em 1999, passou-se para apenas 992 registados em 2019, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Apesar de ainda estar longe de erradicada – e de ser necessário manter a vigilância – a doença está controlada.
A questão é que está controlada apenas em humanos”, diz a investigadora. “Os mesmos parasitas, também através da picada da mosca tsé-tsé, transmitem-se a animais selvagens e domésticos, dando origem a uma doença chamada nagana.”
Os animais – como as vacas – ficam magros, fracos e muitos acabam por morrer. Isso é um problema veterinário, em primeiro lugar, mas, indiretamente, é também um problema humano, já que afeta enormemente a produção agrícola e o rendimento disponível para as famílias de áreas rurais. “Estima-se que a nagana empobreça África até cerca de 4,5 mil milhões de dólares [3,881 mil milhões de euros] por ano. Tem um grande impacto na vida das pessoas dos meios rurais, que dependem dos animais para trabalhar a terra, que é a sua subsistência”.
Os tripanossomas existem há mais de trezentos milhões de anos e a mosca tsé-tsé há cerca de 35 milhões. Eles são uma lição sobre como qualquer organismo, por mais insignificante que pareça, pode interferir no mundo à sua volta. Acredita-se que o parasita unicelular e a mosca de um centímetro têm moldado muito do desenvolvimento de parte do continente africano.
A interação entre microrganismos e sistema imunitário é vista muitas vezes como uma espécie de guerra, em que o patogénio ataca e o sistema imune defende. Mas esses papéis não são estanques. O sistema imune também ataca e o microrganismo também se defende. Todos os patógenios evoluíram para ter mecanismos de proteção e alguns dos melhores são aqueles que lhes permitem passar despercebidos para não serem atacados.
No caso dos tripanossomas, eles estão cobertos pela glicoproteína variante de superfície (VSG), cuja função é enganar o sistema imunitário.
Funciona como uma espécie de casaco do parasita que, periodicamente, é mudado. Ao mudar esta molécula à superfície, ele consegue enganar o nosso sistema imune, que está constantemente a produzir uma resposta de defesa nova, pensando que está perante um micróbio diferente.”
O que o grupo de Luísa Figueiredo percebeu recentemente foi que, nos tripanossomas, a molécula de RNA (ácido ribonucleico) que codifica para a VSG contém uma modificação química – a metilação – que molda esta capacidade de trocar de proteínas-casaco. Esta modificação está localizada num sítio improvável do RNA: numa das extremidades destas moléculas, a chamada cauda poli-A. Isso faz com que o RNA fique mais estável, ou seja, que dure mais tempo na célula. “Se descobrirmos os mecanismos pelos quais o parasita consegue adicionar ou retirar esta modificação, estamos a descobrir alvos para potenciais fármacos que a façam deixar de funcionar.” Ou seja: se o RNA deixar de ter a modificação que o torna mais estável, o parasita deixa de conseguir produzir as proteínas-casaco que enganam o sistema imunitário e fica exposto ao ataque.
O grande interesse da descoberta destes mecanismos – que o grupo de investigação de Luísa Figueiredo está a fazer com um financiamento da Fundação “la Caixa” [ver texto em baixo] – não é só para quem estuda tripanossomas. “Isto é algo novo em termos de biologia e pode ser estudado por investigadores de outras áreas, como a doença de Alzheimer, cancro ou bactérias. Se nos sistemas que estudam também houver metilação das caudas de poli-A, isso pode abrir a porta para fármacos ou ferramentas de biotecnologia que resolvam problemas associados a defeitos nas moléculas de RNA.”
A cientista que estuda a doença do sono garante que dorme bem e em qualquer lado. Se apanha um voo para ir a uma conferência, às vezes adormece ainda antes de o avião partir. E nem os mais de cem decibéis durante a descolagem, enquanto o aparelho rola a alta velocidade pela pista, a fazem despertar completamente. “Quando os miúdos eram pequenos e choravam à noite, ou ia o meu marido vê-los ou tinha de me acordar.”
Hoje, com os dois filhos já mais crescidos, se acorda durante a noite é com alguma preocupação profissional, seja um estudante de doutoramento que parece perdido, seja a notícia de alguém a trabalhar num projeto parecido. Mas a insónia não dura muito. “Escolho um podcast, foco-me a ouvi-lo, o meu cérebro desliga da preocupação e adormeço de novo.”
Se tiver sucesso com o seu projeto nos próximos anos, dar-se-á mais um passo em direção à erradicação da doença que causa ora insónias, ora sonolência na África subsariana.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto Mechanism and Function of Epitranscriptomic Poly(A) Tail Modifications in African Trypanosomes (TrypM6A), liderado por Luísa Figueiredo, do IMM, foi um dos 25 selecionados (6 em Portugal) – entre 602 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do Concurso Health Research. A investigadora recebeu 500 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação na Saúde e as candidaturas para a edição de 2022 encerram a 25 de novembro.