Nhuné conheceu a então Colónia Penal do Tarrafal quando ia receber comida da mão dos presos portugueses no portão, mas foi no “Campo da Morte Lenta” que teve o seu primeiro emprego, como guarda, enquanto levava recados para fora.
“Eu não pensava na prisão. Pensava na alimentação, que era muito escassa em Cabo Verde. Pensava em comer, porque eu tinha mulher e filhos”, recordou, à Lusa, Manuel Vieira Lopes, antigo guarda auxiliar de vigilância da colónia penal, de 1950 a 1956, hoje com 91 anos e um dos poucos ainda vivos daquele primeiro período de funcionamento do antigo Campo de Concentração do Tarrafal.
Há 85 anos, a 29 de outubro de 1936, chegaram à Colónia Penal do Tarrafal, em construção, os primeiros 152 detidos antifascistas, obrigados a trabalhar sob um sol escaldante na construção do muro que seria a própria prisão.
O pai de Manuel, Criscêncio Lopes, começou a trabalhar na colónia penal em 1942, como ajudante de servente e levou-o para o interior, onde estavam os presos políticos e os de delito comum, todos portugueses.
“Chegava aqui para trazer o almoço todos os dias para o meu pai. Tinha 13 anos”, recorda Nhuné, como é conhecido no Tarrafal, boné branco colocado, apoiado na bengala, sua companheira há vários anos, enquanto percorre o interior do antigo campo de concentração criado pelo regime fascista português em 1936, na sua terra natal, e que assim funcionou, inicialmente, durante quase 20 anos.
“O benefício que dava para nós era a recolha de alimentos que sobravam e que nos davam”, conta, recordando que no início a colónia penal recebia a comida diretamente da metrópole, enquanto o Tarrafal, norte da ilha de Santiago, vivia uma forte seca.
“Eram dois presos que traziam a comida que sobrava com um balde grande. Mas [a distribuição] tinha de ser na entrada, à frente dos guardas portugueses”, explica.
Essa comida era então distribuída pelos moradores, sobretudo na aldeia de Chão Bom, terra que mais tarde daria o nome ao campo de concentração.
“Em 1950 puseram-me aqui como guarda auxiliar de vigilância. Fazia o trabalho no talude e os guardas portugueses dentro, nós [algumas dezenas de cabo-verdianos, guardas contratados] à volta. Os guardas portugueses é que falavam com os presos, nós não tínhamos direito. Mas falávamos, quando eles iam trabalhar fora”, explica.
Manuel casou-se em 1954, com 25 anos, quando vivia do que ganhava a vigiar o exterior da colónia penal, oito horas por dia, a partir das 07h00.
“Não me esqueço até à morte, ou enquanto tiver memória. Começávamos a ganhar 215 escudos (…) Dava para tudo. Dava para sustentar a família, perfeitamente“, conta, garantindo que mais tarde ainda tentou pedir a reforma de Portugal, por duas vezes, mas sem resposta.
Na sua primeira fase, como colónia penal, o Tarrafal recebeu 340 presos políticos portugueses e 32 morreram ali. Com o seu primeiro encerramento, Manuel deixou o trabalho de guarda. Contudo, em 1962, foi reaberto com o nome de “Campo de Trabalho de Chão Bom”, para encarcerar os anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde, no total de 230.
Enquanto lá trabalhou, assume que nunca teve problemas com os guardas portugueses.
Já sobre o que se passava no interior, prefere não se alongar: “Eu não tinha nada a fazer. O que tinha a fazer, fiz antes. Fazer alguns mandados [recados] secretamente”.
Aproveitando ter caído nas boas graças dos guardas portugueses, Manuel levava recados dos presos portugueses, os que tinham liberdade condicional normalmente a marcar encontros com mulheres locais.
“Não fui apanhado, tive sorte. Por isso é que eles [guardas portugueses] diziam que era esperto”, brinca.
Entre essas conversas, o jovem guarda conheceu vários portugueses ali colocados pelo regime. Relatavam-lhe tentativas de fuga para Espanha ou o envolvimento com o Partido Comunista Português (PCP).
Ainda criança, Nhuné começou a ouvir ali a história do prisioneiro Bento Gonçalves (1929-1942), com quem se cruzou em pequeno. Foi secretário-geral do PCP até morrer no Tarrafal, com biliosa, sem tratamento: “Grande homem. Um preso respeitado. E quando houve reclamação de comida mal feita, foi através dele. Nenhum tinha coragem para falar com o diretor, só ele“.
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“Veio para aqui porque enfim… O Salazar tinha medo dele”, atira.
Na memória, Manuel ainda tem a imagem de um diretor da cadeia de chicote, que o lançava às crianças que se concentravam no exterior, à espera de comida.
“O capitão Barros. Os meninos vinham aqui pedir comida e ele chicoteava-os. Não tinha coração”.
Sobre as condições no Tarrafal, explica facilmente a dificuldade dos prisioneiros portugueses que ali chegavam: “Era horrível. Chovia muito, mas também fazia muito sol”.
“A maior parte que vinha era do Minho. Depois muitos também de Lisboa”, explica, recordando sobre os provenientes da capital que “eram terríveis” para os guardas portugueses, que os acompanhavam ao mar, próximo do campo.
“Fugiam nos barcos, mas eram logo apanhados”, conta ainda.
Depois de 1956, Manuel Vieira Lopes deixa o Tarrafal e tenta a sorte em São Tomé e Príncipe. Mais tarde, de 1970 a 1973, vai para Angola, como pintor da construção civil: “Trouxe dinheiro e deu para tirar a palha do telhado da minha casa [no Tarrafal] e pus telha”.
Juntou-se ao movimento pela independência de Cabo Verde e, com o sexto ano de escolaridade, foi chamado para a contabilidade da Câmara Municipal do Tarrafal, após a saída dos portugueses.
“Tinha pouca gente que sabia ler em Cabo Verde. Eu fiquei como chefe da contabilidade”, explica.
Após a sua desativação, com o 25 de Abril de 1974, o antigo campo funcionou como centro de instrução militar e desde 2000 alberga o Museu da Resistência. Foi classificado Património Cultural Nacional em 2004 e integra a lista indicativa de Cabo Verde a património da UNESCO.
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Já Nhuné teve cinco filhos, um dos quais falecido, e reformou-se da Câmara do Tarrafal em 1993.
Mais de dez anos antes, pelo Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), foi à URSS durante cinco meses para fazer uma formação sobre Economia Política e Ciências Sociais, para “aprender a trabalhar com o povo” no novo país independente.
“Fui explicar o que era a independência”, rematou.