Rui Moreira reconheceu esta terça-feira, em tribunal, que foi “incauto” ter assinado a procuração que deu poderes a um advogado externo à Câmara do Porto para que representasse a autarquia no chamado caso Selminho. No Tribunal Criminal de São João Novo, no Porto, onde esta terça-feira começou a ser julgado no âmbito do Caso Selminho, Rui Moreira garantiu que a sua intervenção na empresa do ramo imobiliário, ligada à sua família, foi sempre “indireta” e que nunca deu “instruções” sobre que posição o advogado deveria assumir nesse processo. “Nunca tive nenhuma intervenção em nenhuma ação judicial e em nenhum processo urbanístico”, garantiu o autarca.
O presidente da Câmara Municipal do Porto chegou ao tribunal de carro, com um caderno azul na mão e visivelmente descontraído e sorridente. Aos jornalistas, que o esperavam no local, não quis prestar declarações. Rui Moreira tentou entrar no edifício ainda antes das 9 horas, mas um funcionário apressou-se a avisá-lo de que faltavam cinco minutos para o tribunal abrir, o que obrigou o autarca do Porto a tomar um café do outro lado da rua, acompanhado pelo seu advogado, Tiago Rodrigues Bastos, e o seu chefe de gabinete, Vasco Ribeiro.
“A minha participação na Selminho foi indireta”
Depois de alguns problemas técnicos na sala reservada para os jornalistas, a comunicação social acabou por entrar na sala de audiência. Após as apresentações formais, Rui Moreira confirmou que pretendia falar na sessão desta terça-feira. “Não sei há quantos anos existe a Selminho”, começou por explicar à juíza, detalhando cronologicamente os negócios da família, até chegar aos terrenos que estão no centro da polémica. Moreira deixou claro que a sua participação na empresa “é indireta” e que o seu percurso profissional “nada tem a ver com a Selminho”, dizendo mesmo: “Julgo nunca ter participado numa assembleia geral”.
O autarca do Porto esclareceu que, quando chegou à câmara, em 2013, sabia da intenção da empresa da família — de que a mãe do autarca e os oito irmãos são sócios — de usar aqueles terrenos para construção. “Sabia por conhecimento familiar que havia a legítima expectativa de lá construir, sabia de uma tentativa de alteração do PDM, não sabia exatamente em que circunstância estava.”
Moreira recordou os tempos “particularmente agitados e difíceis” em que chegou à autarquia do Porto, após “uma campanha improvável”. “Procurei inteirar-me com o meu antecessor, Rui Rio, procurei ter condições de governabilidade, porque não tinha maioria, estamos a falar de um tempo particularmente agitado e difícil. Chego à câmara sem ter conhecimento de como as coisas funcionavam. Existiam algumas matérias que preocupavam a câmara, esta não foi uma delas”, começou por recordar em tribunal.
Sem se conseguir recordar do momento exato em que o assunto Selminho surge na sua secretária, o autarca explicou que não dispunha da informação que hoje tem. “Muitas das coisas que sei hoje, não sabia em 2013 (…) Fui sabendo de algumas coisas pelos jornais e pela acusação.” O assunto da imobiliária da família surgiu pela primeira vez quando a sua secretária lhe entregou várias procurações e documentos para assinar. “Li a procuração e estava lá referido especificamente o nome Selminho e, em função disso, sabendo da ligação indireta que tinha com a Selminho, dirigi-me ao meu chefe de gabinete perguntando-lhe se aquilo já tinha passado por ele. Não tenho formação jurídica e aparecem coisas que nós não compreendemos.”
Rui Moreira recordou que, ao falar com Azeredo Lopes, seu chefe da gabinete na altura, lhe foi indicado que assinasse a procuração, pois “ela permitia que a câmara continuasse a estar representada numa determinada iniciativa jurídica”. A procuração em causa permitia passar poderes especiais a um advogado, segundo Moreira, externo à autarquia e nomeado anteriormente pela mesma. “Terá sido a direção municipal que naquele caso entendeu o âmbito da procuração”, explicou, acrescentando que o advogado em causa “trabalhava no processo” há vários anos. “Advogado esse com quem nunca falei, nem dei nenhuma instrução. Não conhecia a chefe de divisão que me passou essa procuração”, sublinhou o autarca.
Azeredo Lopes sugeriu que Moreira assinasse procuração. “Foi incauto ter assinado, não devia tê-lo feito”
O presidente da câmara do Porto garantiu ainda que “nunca” foi abordado pelo departamento jurídico da autarquia sobre o processo e que só “alguns meses” depois de assinar a procuração forense que dava poderes ao advogado é que Raquel Maia, na altura diretora municipal da presidência, lhe sugeriu que assinasse um outro documento. “A Dra. Raquel Maia veio falar comigo relativamente à procuração e disse-me era conveniente declarar impedimento, na medida em que se antecipava um acordo num processo que incluía a minha família. Trouxe-me um documento que assinei. Essa foi a minha ultima intervenção relacionada com a Selminho.”
Questionado pelo procurador do Ministério Público, Rui Moreira detalhou as suas atividades profissionais antes de chegar à câmara do Porto, nomeadamente os seus interesses na área imobiliária e de construção. Respondendo negativamente, o atual autarca do Porto revelou ter tido apenas conhecimento da intenção da empresa da família para alterar o PDM em vigor, por ter o desejo de construir nos terrenos da Escarpa da Arrábida. “Tinha a perceção no meu seio familiar que o assunto estava encrencado”, afirmou, dando exemplo de pessoas que “esperam muitas vezes anos a fio para poderem construir um prédio ou uma garagem”.
Questionado sobre a razão pela qual optou por saber junto do seu chefe de gabinete sobre a assinatura da procuração forense — e não diretamente com os serviços jurídicos que redigiram o documento —, Moreira argumentou simplesmente: “Não é da minha competência falar com os serviços jurídicos.” No entanto, o autarca acrescentou que, em 2013, não sabia o que sabe hoje.
E, por essa razão, Rui Moreira não teve dúvidas em afirmar que não deveria ter assinado a procuração, como lhe foi sugerido por Azeredo Lopes, seu chefe de gabinete na época. “Foi incauto ter assinado, era melhor não ter assinado, tenho a certeza absoluta. Se fosse outra pessoa a assinar por mim, não faltaria quem dissesse que tinha sido à minha ordem.”
“Nunca tive nenhuma intervenção em nenhuma ação judicial e em nenhum processo urbanístico”
Voltando a sublinhar o facto de nunca ter falado com o advogado que representou a autarquia no processo, e ao qual passou plenos poderes através da tal procuração, Rui Moreira foi questionado pela juíza sobre quem faria a ponte entre a vontade da câmara e o advogado, no processo no tribunal administrativo. “O advogado vinha a acompanhar o assunto há uma série de anos, na altura quem contratou este advogado foram os serviços jurídicos da Câmara do Porto. A este advogado compete articular com os serviços jurídicos da câmara e com os serviços do urbanismo. É assim que as coisas se passam na câmara do Porto e em qualquer outra câmara.”
Ainda assim restavam dúvidas sobre quem assumiria na autarquia a responsabilidade de assumir o pagamento de uma indemnização. “Quem é que assumiria, em última instância, essa decisão?”, questionou a juíza. “Neste caso particular, o acordo foi celebrado pela pessoa que me substituiu no caso, ou seja, pela Dr. Guilhermina Rego. Por aquilo de que tenho conhecimento, estando eu impedido, a Dra. Guilhermina Rego, depois de ouvir os serviços jurídicos e do urbanismo, chegou à conclusão de que aquela transação era conveniente para a câmara”, respondeu Rui Moreira.
O autarca recordou ainda que nessa altura apenas tinha conhecimento, através do seu chefe de gabinete, de que existiria “um problema de prazos”, que a autarquia do Porto não teria recorrido numa determinada fase do processo, sem, no entanto, saber da fragilidade da posição do município.
Em resposta ao advogado de defesa, Moreira garantiu que “nunca” conversou com os seus irmãos sobre o assunto Selminho após ter tomado posse como presidente. “Não passaria pela cabeça dos meus irmãos questionarem-me sobre isso. O presidente da câmara não toma posições jurídicas, isso é tratado apenas e exclusivamente pelos serviços jurídicos. O poder político só intervém quando é necessário fazer uma transação.”
O autarca do Porto acrescentou ainda que as negociações sempre acontecerem entre os serviços jurídicos da câmara e a empresa Selminho. Uma vez chegado a um acordo final, é necessário formalizá-lo por escrito, sendo o presidente a assiná-lo. Neste caso, Rui Moreira declarou-se impedido, tendo sido substituído pela vice-presidente do município, Guilhermina Rego. “Nunca tive nenhuma intervenção em nenhuma ação judicial e em nenhum processo urbanístico.” Sobre a assinatura da procuração forense, Rui Moreira volta a recordar o momento. “A única preocupação quando li aquela procuração foi ver lá o nome da Selminho, acendeu-me uma luz amarela.”
“Procuração foi válida até 2014 e usada na negociação inicial”
Após uma pausa para o almoço, a primeira testemunha a ser ouvida esta tarde foi Rui Sá, deputado municipal pela CDU desde 2017. Em tribunal, afirmou que tomou conhecimento do Caso Selminho através das primeiras notícias, em 2016, e diz ter ficado perplexo com o acordo celebrado entre a câmara e a imobiliária da família de Rui Moreira.
“Vejo esse acordo com perplexidade pois assume compromissos que competem à assembleia municipal, como a revisão do Plano Diretor Municipal (PDM). Como é que alguém em nome da câmara toma uma decisão que implica uma decisão que é da assembleia municipal? Acho que ninguém pode ultrapassar isso”, disse, acrescentando que o compromisso “nunca poderia ter sido assumido” pela autarquia, pelo menos “sem fazer uma auscultação da assembleia municipal para saber se esta estaria disponível para fazer essa alteração.”
O deputado da CDU recordou que o processo de alteração do PDM é “muito prolongado” e como elemento da assembleia municipal “nunca aceitaria a chantagem” imposta pelo executivo de “ou aprovam esta componente do PDM ou temos de pagar uma indemnização”. “Surpreender-me-ia muito que uma decisão com este alcance partisse da cabeça de um jurista e não tivesse a mão do poder político. De acordo com funcionamento normal da câmara, deveria passar pelo vereador do serviço em causa ou pelo próprio presidente da câmara (…) Num processo com esta complexidade, deveria haver um diálogo entre quem está a intervir no ponto de vista jurídico e o decisor político“, acrescentou Rui Sá.
Segundo a intervenção do deputado, seria prática habitual da autarquia que na condução dos processos judiciais em que a câmara estava envolvida o poder político não fazer qualquer acompanhamento. Apenas em “momentos chave” do processo, os serviços jurídicos autárquicos consultavam o vereador do serviço em causa e, em último caso, o próprio presidente. “Uma matéria tão complexa como é a alteração do PDM” merecia, segundo a testemunha, um diálogo mais alargado.
A segunda testemunha desta tarde foi Honório Novo, antigo deputado municipal do Porto, entre 2013 e 2017, que revela ter analisado vários documentos relativos à Selminho, entre setembro e outubro de 2016, cedidos pelos serviços camarários.
“Analisámos vários processos e na análise decidimos fazer uma exposição à Procuradora Geral da República. Verificámos a inexistência de uma declaração de impedimento, conforme manda a lei nos estatutos dos eleitos locais, que o Dr. Rui Moreira não tinha colocado no respetivo processo. Verificámos também a existência de uma procuração forense que dava poderes especiais a vários advogados, assinada logo depois do Dr. Rui Moreira ter tomado posse e que se manteve válida até 18 de julho de 2014, tendo sido usada para efeitos de negociação inicial numa audiência previa no Tribunal Administrativo e Fiscal, em janeiro de 2014. Verificámos ainda a existência de uma declaração de impedimento sem data.”
Honório Novo afirma ainda que em 2014 “existiu uma alteração daquilo que tinha sido a posição da câmara do Porto até então” e que o acordo celebrado entre a imobiliária e a câmara “é incompreensível” e tem dúvidas sobre a sua “legitimidade”. “Parece-me que não é muito normal antecipar ou fazer premunição de uma decisão da câmara ou admitir a existência de uma indemnização.”
A terceira testemunha ouvida esta tarde foi Pedro Carvalho, vereador entre 2011 e 2017 da câmara pela CDU, que numa reunião de executivo em 2016 foi quem levou pela primeira vez o assunto a Rui Moreira. “Pareceu-me que esta transação judicial feria os interesses do município, comprometendo-se a alterar a qualificação do solo no âmbito da revisão do PDM. Pareceu-me estranho que houvesse esse compromisso por parte da câmara”, começa por explicar, acrescentando que a transação judicial em causa “tentava garantir as pretensões da Selminho”.
Pedro Carvalho recorda ainda que o presidente da câmara saiu da sala nessa mesma reunião. “Admiti que haveria um conflito de interesses”, sublinha, recordando que lhe “foi negada a existência de um compromisso”.
José Manuel Machado de Castro, membro Assembleia municipal do, entre 2004 e 2017 pelo Bloco de Esquerda, tomou conhecimento de “eventuais irregularidades” na autarquia pela comunicação social e revela que pediu para consultar os processos que já existiam em curso. Ao saber do acordo celebrado pela câmara com a Selminho, Machado e Castro ficou “surpreso”. “Ninguém pode aceitar que havendo um PDM que estabelece um regime de ocupação do solo, depois acha que impõe restrições como estas”, afirmou perante a juíza. Questionado pelo advogado de defesa, sobre se a existência do acordo em causa condicionaria a sua aprovação de um novo PDM como membro da assembleia municipal, Machado e Castro afirmou positivamente.
No epicentro do Caso Selminho está a construção num terreno na Escarpa da Arrábida, propriedade adquirida pela imobiliária Selminho, empresa da família de Moreira, em 2001. Durante vários anos, a imobiliária e a Câmara Municipal do Porto travaram uma luta judicial pela capacidade construtiva do terreno em causa, mas a justiça deu sempre razão à autarquia.
O caso começa efetivamente em 2013, quando Rui Moreira toma posse e assina uma procuração para mandatar representantes da autarquia no processo que envolvia a câmara e a empresa da família do autarca. Um ato meramente formal, mas que segundo a análise do Ministério Público contraria os deveres isenção do autarca, que devia ter-se declarado imediatamente impedido por existir conflito de interesses. O Ministério Público alega ainda que o representante do município cumpriu instruções do presidente.
Em 2019, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou que parte do terreno adquirido pela Selminho pertence ao município e, um ano depois, o Ministério Público considera que o atual autarca agiu em benefício próprio e da imobiliária da família, da qual também era sócio, prejudicando assim os interesses do município. Rui Moreira está acusado de um crime de prevaricação, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, e arrisca-se ainda a perder o mandato.