“Não estou aqui para reerguer os muros que derrubei no passado”. A frase isolada podia até dar a ideia de reabilitação da “geringonça”, mas neste momento a imagem que António Costa usou nos últimos anos para mostrar que abriu o arco da governação à esquerda é parte do passado. A relação acabou e o líder do PS surgiu no debate com o parceiro de confiança, o comunista Jerónimo de Sousa, a sublinhar isso mesmo. Mesmo quando do líder do PCP não vinha (e não veio durante o curto debate) qualquer sinal de ofensiva.

Jerónimo de Sousa apareceu pouco combativo, ao contrário de Costa, que surgiu apostado em arrebanhar todo o eleitorado à esquerda e mais algum, sem cerimónias. Não houve a habitual diplomacia com o PCP — que marcou a relação entre PS e comunistas nos últimos seis anos, até por comparação com um diálogo sempre mais crispado com o outro parceiro da esquerda, o BE — e António Costa entrou mesmo logo a apontar o dedo à “irresponsabilidade política” de quem precipitou a queda do Governo. A partir daí foi uma sucessão de “porquês” atirados a Jerónimo, sem que o comunista desse respostas concretas.

“Porque chumbaram o Orçamento? Porque não deixaram chegar à especialidade pelo menos?”. Costa parecia mal resolvido com o fim da relação, mas a intenção era outra: cavar a distância face ao PCP nesta fase: “A ‘geringonça’ agora não me dá confiança”, acabou por dizer mesmo por fim. Jerónimo de Sousa defendeu-se com as “resistências inesperadas e incompreensíveis” do PS na negociação e com a falta de respostas nas áreas laborais — onde o PS sempre esteve mais perto do PSD para aprovar alterações do que da esquerda que o apoiou –, mas também no SNS e também no Salário Mínimo Nacional (SMN).

Costa, que ainda esta semana apresentou uma proposta de aumento do SMN para 900 euros em 2026, pegou nesse exemplo para dizer que o seu Governo promoveu o “maior aumento do salário mínimo na democracia” e disse que a proposta do PCP não tinha em conta as empresas que estão a braços com a crise provocada pela pandemia — num apelo ao centro.

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A crise pandémica é, aliás, uma aliada de Costa que a usa como arma de dramatização, sobretudo quando fala no ‘timing’ da crise política. Quando Jerónimo de Sousa disse que o PS desistiu e começou a pensar em eleições”, Costa disparou — mais uma vez — duas interrogações, de olhos postos na câmara, a apelar aos eleitores: “Algum primeiro-ministro no mundo, numa crise destas, quer abrir uma crise e ir para eleições? Algum primeiro-ministro provoca eleições antecipadas numa situação destas? Toda a gente sabe que fizemos tudo ao nosso alcance até ao limite do razoável”.

E enquanto somava novas indignações com a postura da esquerda na última legislatura — “tenho muita pena e dificuldade em compreender porque é que ela foi interrompida” — ouvia Jerónimo travar quezílias: “Este não é momento nem o espaço para “acusações mútuas”. E também a dar explicações: “Quando afirmamos que o PS queria eleições e não soluções, teve a ver com resistências inesperadas e incompreensíveis. Não avançou com um elemento!”, criticou.

Mas e agora? Ainda há solução entre os dois? “Eu não faria vaticínios antes dos resultados eleitorais”. “As convergências são sempre importantes”. Não, as frases não foram de António Costa — mas podiam ser, sobretudo se este debate tivesse ocorrido antes desta crise. Foi mesmo Jerónimo de Sousa, à saída do debate, a querer manter a “geringonça” ainda como uma solução possível. Frente a António Costa, o comunista até criticou a outra parceira, a líder do BE, que chamou a Costa “obstáculo” para novos entendimentos à esquerda. “Foi uma expressão infeliz”, defendeu.

Mas neste palco Costa tinha uma única mensagem a passar — que vai em crescendo nas suas últimas intervenções: a “geringonça” acabou e não é mais de confiança. Com Jerónimo à sua frente, foi precisamente com a palavra que sempre classificou a relação que manteve com o PCP, “confiança”, que matou a criatura nascida em 2015. A base que os comunistas mais apreciam, a da “confiança”, deixou de existir.

“Não há mortes definitivas a não ser a própria morte”, chegou a dizer o socialista, para logo a seguir acrescentar: “Agora neste momento não sinto confiança para dizer que essa é uma solução estável”. Foi “estável”? Foi, admitiu. Mas agora já não está nos seus planos até porque o plano é a maioria absoluta — “precisamos de uma maioria que não chumbe tudo na Assembleia da República e permita estes avanços efetivos” — e qualquer outro sinal de negociação paralela diminui o objetivo. Dia 31 de janeiro, o day after das eleições, a conversa poderá ter de ser outra.

Ficou, assim, sem resposta a investida comunista de ter uma crítica “clara mas também na perspetiva de encontrar soluções”. No final, Jerónimo saiu queixoso, desabafando, já fora do estúdio do debate, que “o tempo foi curto”.

O diálogo mais revelador

António Costa – Se o Orçamento tivesse sido aprovado, todos os pensionistas que recebem até 1097 euros estariam a receber aumento extraordinário. As pequenas e médias empresas teriam eliminado o pagamento especial por conta. 120 mil crianças em extrema pobreza já estariam a receber a garantia infantil.

Jerónimo de Sousa – Mas porque é que não avançou? Porque é que não avançou com essas medidas?

António Costa – Não avançou porque o PCP se juntou aos outros partidos para chumbarem o Orçamento.

Jerónimo de Sousa – O que é que impediu o aumento das pensões? Sei que resistiram até poder, mas porque é que não avançaram?

António Costa – O senhor deputado sabe bem. Fizemos o aumento normal porque o regime de duodécimos o permite. Não permite o aumento extraordinário. Porque é que chumbaram o Orçamento? Porque é que não deixaram o Orçamento chegar à especialidade? Quando falamos da necessidade de estabilidade não é por acaso: é para garantir que aplicamos as medidas que beneficiam a vida concreta das pessoas e das empresas.