Desde o início de janeiro de 2022 que Margarida Saraiva e a equipa estão “fechados” num laboratório de biossegurança, no Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto, experienciando um cenário que conhecemos melhor dos filmes de ficção científica.
Por estes dias, em vez de se dirigir ao gabinete no corredor 112 do piso 1 do i3S, onde habitualmente trabalha, a bioquímica de 46 anos carrega no botão do piso -2 no elevador para chegar ao BSL-3: o laboratório de biossegurança de nível 3, ou de contenção, usado para trabalhar com agentes de risco biológico. Tudo para compreender “como é que podemos atacar a tuberculose ativa” e “até que ponto podemos fazê-lo olhando para o hospedeiro e para a bactéria de uma forma mais holística do que tem sido feito até agora”, sintetiza a investigadora.
“[Antes de entrar], mudamos para um pijama cirúrgico, colocamos uma série de equipamento de proteção pessoal, que envolve um fato-macaco, uma máscara apropriada, touca, bata, dois pares de luvas e uma proteção de sapatos”, descreve a coordenadora científica do grupo de investigação Immune Regulation do i3S. Só esse protocolo de biossegurança pode demorar, em média, pelo menos vinte minutos.
É que o projeto de investigação TB-TARGET (“uma abordagem multidisciplinar para compreender as interações entre o hospedeiro e os agentes patogénicos a fim de desenvolver novas estratégias para combater a tuberculose”) em que está a trabalhar, atualmente, tem “uma particularidade”, elucida a investigadora.
Trabalhamos com o Mycobacterium tuberculosis, um agente que causa doença nos humanos e se transmite por aerossol. Temos de ter um ambiente contido, onde minimizemos os aerossóis e o risco da nossa contaminação, por isso usamos todo o equipamento de proteção pessoal e da dos colegas.”
E logo acrescenta para melhor clarificar o que está em causa: “O BSL-3 é uma estrutura que opera inclusive sob pressão negativa, o que impede a saída de ar.” Ou seja, de cada vez que sair desse laboratório de biossegurança, os investigadores têm de repetir o protocolo de proteção individual e esterilização do equipamento. Têm de ficar “fechados”. Não é uma experiência compatível com ir “responder a e-mails”, “beber água” ou “sair para ir à casa de banho”.
A descrição é relevante para evidenciar quer o nível de risco controlado, quer o mergulho científico que é necessário fazer para chegar a resultados que vão contribuir para travar a tuberculose (TB). “A nossa ideia é [encontrar] uma terapia combinada, nem só antibiótico, nem só imunoterapia. Uma terapia que combine o target do hospedeiro e o target do patogeno. Por isso é que o nosso projeto se chama TB-TARGET.”
A tuberculose é uma doença infeciosa, do foro respiratório, causada pelo Mycobacterium tuberculosis, uma bactéria que se transmite por inalação. A bactéria é expelida para o ar pelos doentes com TB, nomeadamente através da tosse. Logo, afeta principalmente os pulmões e pessoas adultas, sobretudo homens. Estima-se que um quarto da população mundial esteja infetada com a bactéria causadora da TB, embora nem todos manifestem doença ativa.
Temos um número bastante assustador [de doentes com tuberculose] e, pela primeira vez em décadas, as estatísticas pioraram no ano passado. São dez milhões de novos casos, por ano, no mundo. E são casos notificados, porque haverá outros que não são. É mesmo difícil travar a tuberculose.”
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), morreram em 2020 cerca de 1,5 milhões de pessoas com TB em todo o mundo, sendo esta a décima terceira causa principal de morte. Em Portugal, houve pelo menos 1500 casos ativos registados em 2020, segundo o mesmo organismo.
“A tuberculose é uma doença que perpetua a pobreza e a pobreza perpetua a tuberculose”, realça Margarida Saraiva. “Logo aí o impacto social da tuberculose é muito elevado .” E acresce: “Antes da Covid-19, a tuberculose era a única doença infeciosa que estava nas dez principais causas de morte. E era a principal causa de morte por um único agente infecioso, portanto tem-nos acompanhado há imensos anos. É das doenças mais antigas, endémicas e longas que temos.”
A eliminação da tuberculose é considerada uma urgência mundial que está nas prioridades da agenda global dos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, prevendo-se que “até 2022, sejam necessários 13 mil milhões de dólares anuais para a prevenção, diagnóstico, tratamento e cuidados contra a tuberculose, a fim de atingir a meta global acordada na reunião de alto nível da ONU sobre a tuberculose em 2018”.
Além disso, Margarida Saraiva, que foi presidente da Sociedade Portuguesa de Imunologia (2018-2021), nota outro problema associado à TB. “Temos cerca de dois mil milhões de pessoas com infeção latente. São indivíduos que, a certa altura, foram infetados pelo Mycobacterium tuberculosis, mas conseguiram controlar a infeção.”
Ou seja, não desenvolveram a doença, não são contagiosos, mas são um reservatório. “Terão eventualmente a bactéria ainda alojada, escondida no organismo, e o que se estima é que cerca de 5 a 10% progridam para doença ativa”. Indivíduos com HIV, por exemplo. “Tudo o que altera o equilíbrio do sistema imune, potencialmente pode levar a uma reativação da tuberculose em indivíduos latentes.”
Nesse sentido, o projeto TB-TARGET, liderado por Margarida Saraiva e financiado em cerca de um milhão de euros pela Fundação “la Caixa” pretende contribuir para travar a doença. Com duração até 2024, a investigação engloba quatro equipas de laboratórios internacionais, numa colaboração integrada. Além do i3S, que coordena a investigação, são parceiros o The Francis Crick Institute (Reino Unido) e o Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Espanha), que participa com duas equipas distintas, uma de Valencia, e uma de Madrid.
O interesse da cientista nesta linha de investigação começou em 2011 numa conversa com um aluno de doutoramento – o pneumologista Helder Bastos, do centro hospitalar de São João (Porto). Nesse ano, estava já na Universidade do Minho como investigadora, depois de oito anos no Reino Unido, onde fez doutoramento sobre a varíola – igualmente uma doença infeciosa – na Universidade de Cambridge (2003) e um pós-doutoramento, no Medical Research Council do National Institute for Medical Research (2005), onde foi ainda investigadora no departamento de Imunorregulação.
“Na altura, estávamos a comentar o facto de alguns doentes com tuberculose estarem muito mal, mas outros não”, recorda, acrescentando que “em alguns casos os médicos só descobrem a TB quase por acaso”. Ficou interessada na problemática e pensou: “é estranho que haja uma espécie de um espectro de tuberculose, pois eu pensava que era mais ou menos uma doença idêntica”.
A par disso, Margarida Saraiva – “uma bioquímica que gosta de moléculas e de interações” –relacionou esse aspecto com uma descoberta científica. O cientista Sébastien Gagneux, orientador de pós-doutoramento em Londres do amigo e atual co-project leader do TB-TARGET, Iñaki Comas (Instituto de Biomedicina de Valencia), provara que “a Mycobacterium tuberculosis não é uma bactéria única, havendo muitas bactérias diferentes que estão adaptadas a diferentes populações e com diferenças funcionais ao nível da manifestação e transmissão da doença”.
Ato contínuo, a coordenadora científica do TB-TARGET suspeitou: “Será que as duas coisas estão ligadas e que a diversidade da bactéria pode estar a causar diferentes severidades da doença?” Até ao momento, o espectro de investigação em que incidira era a população portuguesa, que é “relativamente homogénea”. A ideia foi, então, desenvolvida em investigação doutoral por vários estudantes, entre eles o pneumologista Helder Bastos, e provou-se que a diversidade da bactéria “parece ter um papel na severidade da doença”.
O projeto atual parte precisamente de explorar “essa diversidade da bactéria como uma ferramenta, que nós podemos utilizar para perceber melhor a tuberculose e que normalmente não é utilizada, porque olha-se para o doente e não se olha para a bactéria que infetou o organismo.”
A investigação está dividida em cinco tarefas principais, atribuídas a cada um dos parceiros de investigação. As tarefas 1 e 5 são da responsabilidade da equipa da Margarida, no i3S. “Vamos usar diferentes bactérias que foram isoladas de pacientes com tuberculose com diferentes severidades e que nós já conhecemos bem, porque têm sido alvo do nosso estudo molecular e celular, e vamos infetar um modelo de ratinho”, elucida.
Mas há um “truque”, sublinha a coordenadora científica do TB-TARGET. “Consiste em variar a dose da infeção e a estirpe genética do ratinho, que foi um truque que descobrimos em conjunto com a equipa da Anne O’Garra do Francis Crick Institute, em que conseguimos ter no modelo animal uma boa reflexão daquilo que nós sabemos que é a resposta imunológica no humano e que é uma coisa que não existia antes.”
O que querem perceber é o seguinte: ao infetarem o animal, como por exemplo com uma bactéria associada a uma tuberculose ligeira e uma tuberculose severa, quando é que a resposta imune começa a ser diferente. “Se é logo de início, se é mais à frente, como e onde é que isto diverge?”, questiona a investigadora.
“E quais são os mecanismos subjacentes? Por que esses são os mecanismos que nós vamos querer modular, por exemplo, para impedir uma progressão para uma doença severa”.
Essa é a base da tarefa inicial: “descobrir os mecanismos que discriminem tuberculose severa de tuberculose ligeira e esses mecanismos e essas assinaturas moleculares vão ser, depois, testadas nas bases de dados de pacientes”. E assim sucessivamente. No final, os resultados voltam para o i3S para serem validados.
“A terapia [atual] tem bastantes limitações porque é uma terapia muito longa e bastante tóxica, não é uma terapia de todo fácil. E o que acontece, muitas vezes, é que, como o paciente começa a melhorar ao fim de duas ou três semanas de tratamento, em algumas situações abandona o tratamento, não completa a terapia e isto depois, é um promotor de mais resistências a antibióticos.”
Por esse motivo, Margarida e a equipa estão entusiasmados com as implicações positivas que os resultados podem trazer para o campo da imunoterapia para travar a TB. “Um dos grandes problemas das doenças infeciosas como esta é precisamente o uso de antibióticos no desenvolvimento de resistências. Nas terapias imunes, conseguimos ultrapassar completamente essa questão, porque são direcionadas para o hospedeiro e não para a bactéria”.
Até final de 2024, “se tudo correr bem”, a equipa do TB-TARGET vai também “identificar alvos na bactéria que precisam de ser modulados de um ponto de vista terapêutico e conseguir identificar moléculas que possam ser usadas como fármacos”.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta [https://observador.pt/seccao/mentes-brilhantes/] e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto A Multidisciplinary Approach to Understand Host and Pathogen Interactions to Develop New Strategies to Target Tuberculosis, liderado por Margarida Saraiva, do i3S, foi um dos 30 selecionados (12 em Portugal) – entre 644 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2021 do Concurso Health Research. A investigadora recebeu um milhão de euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O concurso chama-se agora CaixaResearch de Investigação em Saúde [https://fundacaolacaixa.pt/pt/concurso-caixaresearch-investigacao-saude-descricao-programa] e as candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 25 de novembro. Os prazos para a edição de 2023 deverão ser conhecidos no verão.