Tal como na atual pandemia causada pela Covid-19, também a pandemia provocada pela Gripe Espanhola, há cerca de 100 anos, levou à implementação de medidas para tentar mitigar os contágios. E, tal como hoje, um setor da sociedade recusou acatar as restrições.
A Gripe Espanhola não teve origem, na verdade, em Espanha. Este novo vírus surgiu no Estado do Kansas, nos Estados Unidos da América, em março de 1918. O vírus foi reportado entre diversos soldados que seriam depois transferidos para França, para combater na Primeira Grande Guerra — o que levou à propagação do vírus pelo resto da Europa.
Tendo sido o primeiro país da Europa que verificou um aumento significativo de casos em toda a sociedade, Espanha ficou para sempre associada à pandemia do início do século XX. A 17 de setembro de 1918, segundo a ABC, foram implementadas as primeiras medidas sanitárias contra a Gripe Espanhola, como o encerramento das fronteiras com Portugal e França.
Não nos devemos esquecer que as medidas que funcionaram nesta última pandemia [Covid-19] foram interiorizadas em 1918: a distância de segurança, a ventilação, a higiene, a preferência por atividades ao ar livre e o uso de máscara”, explicou à ABC o virologista e professor de Microbiologia na Universidade de San Pablo, Estanis Nistal.
“Coloca uma máscara, salva a tua vida“, era o conselho da Cruz Vermelha para combater a gripe responsável pela morte de entre 50 a 100 milhões de pessoas. Uma parte da população, contudo, recusou o uso da máscara, numa altura em que não existiam nem vacinas contra o vírus, nem terapias farmacológicas eficazes para controlar os infetados, que manifestavam sintomas gripais severos.
Na Europa o uso da máscara não foi implementado à escala geral, tendo sido nos Estados Unidos da América que esta medida ganhou mais força, desencadeando, por outro lado, movimentos que se opunham esta regra sanitária.
Em outubro de 1918, o Serviço de Saúde Pública norte-americano começou a distribuir pela população folhetos relacionados com as novas regras, e a Cruz Vermelha afirmava, nos jornais da época, que “todo o homem, mulher ou criança que não use [máscara] deve ser considerado um negligente perigoso“.
Além disso, eram dadas instruções de como fazer máscaras caseiras, com gaze e fios de algodão. Em Estados como a Califórnia, Utah e Washington, os movimentos anti-máscara consolidaram-se, particularmente após a implementação de medidas mais severas. “Quem espirrar sem cobrir a boca será detido“, podia ler-se na imprensa da época.
Foi em São Francisco que se decretou pela primeira vez o uso obrigatório de máscara. De imediato surgiu um movimento de oposição, liderado pela sufragista E.C. Harrington: a Liga Anti-Máscara.
Os argumentos utilizados pela liga eram semelhantes àqueles utilizados hoje em dia, como a alegada ineficácia da medida e o facto de representar um atentado à liberdade individual. Segundo a ABC, por esta altura, os juízes saíram à rua e começaram a realizar os julgamentos em ar livre, como protesto contra o uso das máscaras.
O então mayor da cidade, James Roph, apelou “à consciência, ao patriotismo e à autoproteção, que exigem o cumprimento imediato e rígido do uso da máscara“. O número de detenções disparou, e o chefe da Polícia de São Francisco informou o mayor que a cidade estava a ficar sem celas vazias. Juízes e oficiais de justiça tiveram de trabalhar horas extra noite dentro e os fins de semana foram ocupados em julgamentos, para reduzir o número de detidos nas cadeias.
Num só dia, segundo o San Francisco Chronicle, foram detidas mais de 100 pessoas por “perturbar a paz” ao não utilizar máscara. O preço a pagar para quem fosse apanhado com a boca e o nariz à mostra eram 10 dias na prisão ou o pagamento de uma multa equivalente, atualmente, a 80 dólares.
As ordens, ainda assim, continuaram a não ser acatadas. A 25 de janeiro de 1919, a Liga Anti-Máscara realizou uma manifestação, com mais de 2 mil membros, no centro da cidade, em oposição ao decreto.
Mais tarde, esta medida sanitária foi estendida a outras cidades norte-americanas, como Denver, Seattle, Sacramento e Phoenix. Escolas, igrejas, teatros e salas de cinema foram encerrados nestas localidades. Em Oakland, o mayor da cidade lançou um apelo aos seus habitantes: “O sensato e patriótico, sem que importem as nossas crenças pessoais, é proteger os nossos concidadãos, unindo-nos nesta prática.”
Já o Conselho de Saúde de Nova Iorque preferiu uma abordagem mais direta: “É melhor fazer o ridículo do que estar morto.”
Do outro lado do Atlântico, na Europa, as regras utilizadas para combater a Gripe Espanhola foram diferentes. Em Espanha, o governo mandou encerrar as salas de cinema e apelou aos líderes locais para que limitassem a lotação dos eventos públicos — o que levou a uma grande revolta por parte da Igreja. Apenas no Reino Unido, e limitada a algumas cidades e grupos específicos, como as enfermeiras, a máscara foi recomendada.