Setenta e cinco minutos de debate e a maior surpresa surgiu na flash interview, já bem depois da hora. António Costa saiu do frente a frente com Rui Rio, enfrentou dez minutos de perguntas dos jornalistas e fez pela primeira vez e sem qualquer timidez o que ainda não tinha feito: não só verbalizou claramente o desejo pela maioria absoluta como fez questão de se colar à autoridade e à popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa.
“Felizmente temos um Presidente que tem todo um mandato que vai cobrir a próxima legislatura, é uma pessoa de quem os portugueses gosta. Alguém acredita que com Marcelo como Presidente da República poderíamos ter uma maioria absoluta que pisasse o risco? Não pisava o risco dois dias, era o primeiro [dia] e acabava”, atirou o líder socialista, palavra por palavra. A mensagem era dirigida aos que têm “receio” de uma maioria absoluta e dos abusos de poder que ela possa significar. O que o socialista quis passar é que Marcelo estará lá para arbitrar.
O trunfo de Costa acabou por ser usado depois de um debate em que o líder socialista voltou a hostilizar os antigos parceiros de esquerda e a voltar a insuflar o PAN — tal como já tinha feito no debate com Inês Sousa Real. “A geringonça não é possível mas não conhecemos os resultados nas eleições, não esqueço que um partido: o PAN não contribuiu para esta crise.”
Primeira saída: maioria absoluta. Segunda saída: maioria com o PAN. E terceira saída? Costa, também pela primeira vez nesta pré-campanha, desfez o tabu: se falhar a maioria absoluta e se o PAN não for suficiente para formar uma maioria, Costa governará à Guterres. “Se não tiver a maioria absoluta, não viro as costas aos portugueses. Irei conversar com os partidos na Assembleia da República ou no modelo clássico do engenheiro Guterres.”
Rio responde com papão Pedro Nuno
Com o tema da governabilidade — ou falta dela — a marcar o ritmo do debate nos primeiros minutos (foi Rui Rio, de resto, que introduziu o tema), o líder social-democrata procurou evidenciar o labirinto em que vive o socialista: sem pontes à esquerda, sem pontes à direita, sem maioria absoluta, que garantias oferece António Costa?
Rui Rio concretizando uma resposta que vem ensaiando há muito e que serve a estratégia que ele próprio definiu para esta campanha, a de conquistar e blindar o centro político. Cenarizando com a saída de Costa da liderança do PS (perdendo ou ganhando sem maioria as eleições), o social-democrata tentou convencer os eleitores que pensam votar no PS de Costa, que Pedro Nuno Santos, o rosto da ala mais à esquerda do partido, está à espreita.
“António Costa não tem condições de reeditar a ‘geringonça’ mesmo que seja o mais votado. Vai dar o quê? O que é que faz? Talvez saia e vamos ter outro primeiro-ministro e tudo indica que venha a ser Pedro Nuno Santos. Teríamos o Bloco de Esquerda mesmo no Governo. Isso é um perigo para o país”, disse e repetiu o líder social-democrata.
O facto de Rui Rio ter repetido a mesmíssima mensagem na sua própria flash interview foi a prova provada de que era uma estratégia deliberada de Rio para este debate. “Quem tem mais hipóteses de suceder a António Costa é Pedro Nuno Santos, alguém que é bastante à esquerda. É minha obrigação colocar este raciocínio em cima da mesa”, despediu-se o social-democrata. Traduzindo: António Costa servirá de cavalo de Tróia para Pedro Nuno Santos, que fará ainda pior ao país que a defunta ‘geringonça’.
Quanto ao resto, o líder social-democrata não desviou uma única peça do xadrez político que definiu para o day-after: se tiver 116 deputados, com IL e CDS, governa com eles; se falhar esse objetivo, vai esperar que o PS viabilize o governo dele; se perder as eleições, vai estar disponível para garantir com o PS a governabilidade do país.
O Chega está arredado das contas e o objetivo foi, mais uma vez, convencer os eleitores de que o PSD colocará sempre o interesse nacional acima do interesse partidário — por oposição ao PS, subentenda-se. “Se estou a exigir isso dos outros, tenho de fazer o mesmo. Estou disponível para negociar a governabilidade do país. António Costa não diz isto. Antes pelo contrário, atira-se para uma ingovernabilidade.”
Economia, Saúde, Justiça e TAP. Os quatro temas-chave
Arrumada a questão da governabilidade — que seria recuperada mais tarde pelos próprios protagonistas — o debate centrou-se na visão dos dois para o desenvolvimento do país. Partiu Rio ao ataque, com referências a António Guterres, José Sócrates, aos países do leste europeu que já ultrapassaram Portugal, um país a “empobrecer” em termos relativos e com “salários de miséria”.
Numa ideia: “Temos de tratar das empresas, são elas que criam emprego. Temos de dar um empurrão no sentido positivo. Se eu quisesse ganhar as eleições mais rapidamente fazia o contrário, mas o contrário seria persistir nos erros do PS. Quero o futuro dos portugueses, não quero só o amanhã“, disse Rio.
Com Rui Rio a defender a necessidade de baixar o IRC sobre as empresas para estimular o crescimento económico, António Costa respondia com a defesa do seu modelo para a retoma económica.
“[Vamos ter] uma redução muito forte para todas as famílias que têm filhos [e para os mais jovens]. A proposta do PSD para o IRC é errada”, dizia, garantindo que, por outro lado, há um consenso, incluindo dos empresário, de que é preciso aumentar salários. Quem não aumenta salário mínimo não consegue aumentar os outros salários”, ia intercalando o líder socialista.
“Acabei de ouvir António Costa e o que disse é vamos na mesma linha de continuidade. Toda esta linha que foi seguida, que deu os resultados que conhecemos, é a linha que vai continuar. As coisas vão continuar na mesma. Portugal vai continuar a cair”, atacou Rui Rio. Costa trazia um passe estudado para responder a esta jogada que passava por acusar Rio de fazer “uma malandrice habitual,que é procurar diluir os resultados nos últimos seis anos da governação falando na média do PIB nos últimos 15 anos”. “O senhor é economista e não precisava de recorrer a estas malandrices para reconhecer o óbvio que é que hoje o país está a crescer mais”, tentava firmar sobre este assunto.
O tema da Saúde acabaria por provocar a primeira grande faísca entre os dois num debate que começava já a subir de tom. À boleia da reforma que pretende para a Administração Pública (“há mais funcionários públicos, os serviços públicos estão cada vez piores e é preciso otimizá-los”), Rio atirou-se ao SNS para denunciar o estado a que chegou a Saúde em Portugal pelo “tabu ideológico” de não olhar para os privados e para o setor social como complementares ao público.
Na resposta, o líder socialista apostou em dois trunfos: dramatizar (“pode falar do SNS depois do que os nossos compatriotas fizeram durante por nós?! Por amor de Deus”) e colar a Rio uma visão liberal da Saúde (“o PSD pretende que a classe média passe a pagar os cuidados de Saúde”).
A resposta do social-democrata veio a dois tempos. Primeiro, tentou desarmadilhar o ataque mais emocional de Costa. “Não vale a pena fazer teatro.Isto não tem nada a ver com a qualidade dos profissionais de saúde. O SNS não responde como deve ser”. Em segundo lugar, e na já referida flash interview, em jeito de fact check improvisado. “Tentou agitar um papão. [A acusação de Costa] é surrealista e abstrusa. Não tem cabimento nenhum”, despachou.
A discussão sobre o estado da Justiça acabou por ser o campo em que António Costa, quase sempre no contra-ataque, aproveitou para tentar inclinar o campo e assumir o controlo de jogo. O líder socialista recuperou as ideias de Rio sobre as reformas dos conselhos superiores de Magistratura e do Ministério Público para acusar o líder social-democrata de ter “um programa para a Justiça muito perigoso” e de tentar “subordinar o Ministério Público” à agenda política.
O tom foi particularmente duro e chegou a ser pessoal — “agora vou falar devagar…”, disse Costa, sugerindo que o facto de Rio ser um economista e não um jurista — como ele — faria com que não dominasse a questão. “A autonomia do Ministério Público é a melhor garantia que os cidadãos têm de que se houver alguma suspeita sobre mim ou Rui Rio, o Ministério Público usa a sua autonomia, ninguém está acima da lei. É assim que posso andar de cabeça levantada porque os portugueses sabem que não é porque controlo a magistratura que não sou investigado, mas porque ela é independente.”
O social-democrata não se desviou um centímetro das ideias que sempre defendeu para a Justiça, devolvendo mimos pouco simpáticos. “André Ventura não faria melhor. É populismo aquilo que António Costa vendeu. Não deve haver uma maioria de magistrados. Tem tendência para o corporativismo. Precisamos de transparência.”
A TAP seria o último grande tema do debate. E, mais uma vez, o social-democrata meteu a quinta. “A TAP serve de forma indecente [o país]”, começou por dizer um quase colérico Rio, para logo mostrar dados sobre uma viagem entre Madrid e São Francisco, com escala em Lisboa, que custará 190 euros, ao passo que uma viagem entre Lisboa e São Francisco seriam 697 euros. “Isto é revoltante. É admissível? É gravíssimo. É para isto que os portugueses estão a dar dinheiro”, atirou de o presidente do PSD quase de um fôlego, prometendo vender a companhia aérea assim que fosse possível.
Costa manteve-se inamovível. A recuperação da TAP, disse, aconteceu porque “o privado que lá estava não merecia confiança” e porque era preciso garantir que esse privado, David Neelman, “não daria cabo da TAP um dia que fosse à falência”. “A TAP salvou-se porque o Estado estava lá”, rematou Costa, antes de perguntar ao adversário o que faria se tivesse sido confrontado com a mesma situação. Mas já não tinha interlocutor: Rio já tinha marcado o seu ponto.