Um azar na vida, uma doença, um pesadelo real em loop, que nunca acaba. Quando damos conta de que uma tragédia está a acontecer a outra pessoa, mais ou menos próxima, habitualmente pensamos: “a mim, nunca”. Nunca acontecerá, é impossível. Até ao dia. Joana Dias, realizadora de rádio e repórter de entretenimento na Antena 1, passou pelo mesmo raciocínio. Viu-se envolvida num caso de violência doméstica. Libertou-se, foi reconstruindo as peças, recorrendo à escrita, sempre a escrita, porque uma folha em branco não pode julgar, só ajudar.

Em 2019, decide lançar um podcast de dez episódios, com uma história semelhante à sua, mas sem nomes e caras. Entretanto, a pandemia leva-nos a todos para casa. E Joana Dias sentiu a urgência de tornar novamente seu aquilo que queria que fosse de toda a gente. “Há dois anos não conseguia dizer que a história era minha, mas, por causa da pandemia, comecei a ficar ansiosa com a quantidade de pessoas fechadas com os seus agressores. Achei que, à minha escala, tinha que fazer chegar a palavra à hora certa o que podia ter um bom efeito”, conta ao Observador. E fez. Lançou uma campanha no seu Instagram. Recebeu muitas mensagens com histórias de violência doméstica. “Estava na hora, não sou figura pública mas o meu trabalho é, tinha de sair do lugar de silêncio e de medo. O silêncio é aliado do agressor. Se eu falasse podia ajudar alguém”, diz.

Silêncio quebrado, foi preciso andar para a frente. Do áudio para o audiovisual foi uma adaptação natural. Primeiro através da Academia RTP, depois pelo RTPLab, concurso de séries que a estação pública lança todos os anos. A ideia original de Joana Dias passou então para uma minissérie de três episódios, de 15 minutos cada, realizada por Pedro Gomes e Ana Brás (que também escreveram o argumento) e protagonizada por Teresa Tavares, que se estreia esta segunda-feira na RTP Play. “Foi uma passagem natural, primeiro pensei: será que estou a fazer bem? Mas depois percebi que era uma atitude transformadora, sofrimento em expressão artística. Deu-me força. Temos muita tendência para desdramatizar, para achar que é um exagero o que nos está a acontecer, mas isto é um flagelo no nosso país”, diz.

[o trailer de “A Mim, Nunca”:]

Não há orçamentos de Hollywood, mas uma mensagem que se quis transversal. Com uma história simples: mãe Joana e o filho Lucas (Vicente Ramirez) de 5 anos estão a ser perseguidos pelo ex-namorado Rui (Leonardo Proganó). É certo que 45 minutos nunca chegam para uma realidade que, só em 2020, mostrou dados assustadores: 51 mulheres, homens e crianças assassinadas em situação de violência doméstica, segundo dados oficiais da APAV. E porque a realidade, como se vê, é sempre maior do que a de uma vítima e de um agressor específico, a autora queria que o projeto olhasse não só para a mulher, mas para a família como um todo. Por isso é que a visão da série ao nível da realização se quis tanto feminina como masculina e, no terceiro ato, mista. Tudo escrito a seis mãos para uma abordagem universal e que também se focasse noutras vítimas: as crianças. “A minha cabeça vai sempre parar às crianças, é preciso ensiná-las a lidar com as suas emoções, como se estuda português ou matemática. É uma necessidade imperativa que pode dar frutos daqui a uns anos”, sugere.

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Nestes três episódios temos linhas de diálogo que foram ditas a Joana Dias. Sentidas por Joana Dias. E está também uma violência que, por vezes, parece mais escondida, mas que pode doer muito mais: a psicológica.  “Quando vemos as campanhas, há logo um homem a bater numa mulher, mas por vezes não tem de ser uma violência física, nem tem de ser assim. Há quem esteja fechado a sofrer com uma violência psicológica extrema. O agressor nunca lhes toca com um dedo, mas são diariamente privadas da sua liberdade e manipuladas. É uma prisão”, argumenta.

Quanto às três personagens, foi preciso desenhá-las segundo a experiência pessoal da autora, mas também de acordo com os relatos que já existem e os dados oficiais. O agressor manipulador, repleto de raiva, que persegue. O filho que vê e sente e não sabe filtrar. A mulher abusada que luta contra uma realidade da qual lhe custa tanto sair, visto de longe. De certa forma, a séria acaba por se passar “toda dentro da cabeça da personagem principal”, a Joana, garante Teresa Tavares ao Observador, que já tinha interpretado um papel semelhante. “Acho redutor olhar-se para esta mulher como só sendo vítima de violência doméstica, a personagem é muitas outras coisas antes de ser vítima. Esta minissérie debruça-se sobre o intervalo da sua vida em que se está a libertar de uma situação de abuso, mas ela existe além disso”, refere. Portanto, para a atriz foi mais importante basear-se na descoberta daquela personagem em todas as suas dimensões complexas, entre um passado feliz e um presente de sofrimento,, do que apenas como alguém envolvido num caso de violência doméstica.

Neste trabalho a vários mãos onde o tempo conta e a vontade de passar bem a mensagem ainda mais, aquilo que poderá ter faltado a “A Mim, Nunca”, terá sido precisamente a falta de tempo. “Estávamos todos muito ligados e a trabalhar em sintonia. A dificuldade, no limite, foi a de, em alguns momentos, não ter tido mais tempo”. Infelizmente, seguindo a cronologia, a violência doméstica continua a ser uma realidade em Portugal. Por outro lado, o tema já não é tabu para ninguém. Existem campanhas, muitas informações disponíveis e uma maior consciencialização da sociedade para este tema, segundo Teresa Tavares e Joana Dias. Para a atriz, este foi o seu contributo. Porque, tal como a autora desta ideia original, houve aqui um ato transformador. “A ficção não tem de ser pedagógica de forma nenhuma, mas tem um poder transformador, é uma ferramenta poderosa. Não chega, só com uma educação de base toda ela desenhada para a não violência. Temos de caminhar para a empatia e para a inclusão. Será aí que podemos resolver verdadeiramente estas questões”, finaliza.