Já passámos de meio de janeiro, mas estas previsões não caducam em tão pouco tempo. O ano ainda mal começou. E quem lê, analisa e acredita nos versos de Nostradamus garante que 2022 será catastrófico. Avizinha-se uma crise económica que trará fome, cenário tirado deste verso:
“O mel custará muito mais do que a cera das velas
tão alto o preço do trigo
Aquele homem está agitado
O seu companheiro come no seu desespero”.
As alterações climáticas também continuarão a inquietar os terrestres, já que “os peixes vivos do Mar Negro quase ferverão”. E uma forte explosão nuclear poderá provocar secas severas e inundações de proporções bíblicas. Na base desta leitura está o verso que diz
“Por 40 dias o arco-íris não será visto
Poe 40 dias será visto todos os dias
A terra seca vai crescer mais árida
E haverá grandes inundações quando forem vistas”
Outra passagem proclama a morte de uma figura política importante – não se sabe ao certo quem será, afinal, as previsões têm quase 500 anos. Os estudiosos mais atrevidos das palavras de Nostradamus, porém, disparam nomes e, entre eles, está o da Rainha Isabel II e o de Kim Jong-un, líder norte-coreano como avança o ABC. A culpa é do verso:
“A morte repentina da primeira personagem
trará uma mudança e eles colocarão outro no seu reino”.
Mas há mais. Há quem veja nos seus escritos o fim da União Europeia, que teria começado com o Brexit em 2016, ao ler “Templos sagrados do tempo romana rejeitarão os cimentos das sua fundação” ou “Ao redor da Grande Cidade haverá soldados alojados em campos e subúrbios”. Alguns relacionam esta última frase com a queda da União Europeia, mas outros com uma guerra ou o cerco de uma grande cidade.
Animados com os avanços tecno-científicos de 2021, talvez inspirados pelos feitos de Elon Musk ou pelos seus projetos, os fiéis de Nostradamus divisam ainda outra realidade: aquela em que a inteligência artificial e os robôs vão dominar.
Mas cuidado, pede José Pereira Coutinho, sociólogo da religião e investigador no Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião, da Universidade Católica Portuguesa, que prefere descrever Nostradamus como “um vidente”. É preciso muita atenção, continua o professor ao Observador: “Ao ler os versos, não se lê nada em específico”. “Isto é como a astrologia, as pessoas leem o que querem ler”, reitera.
Na verdade,“se quisermos ser honestos, nós não sabemos as previsões para 2022”, sublinha Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona. Quando se fala em previsões para o presente ano, está-se a “pegar num texto lato”, a ver o que falta acontecer, a adaptá-lo à realidade de agora e a dizer que pode ocorrer, algo que “faz parte do campo especulativo”. Cheio de referências crípticas, falta ao texto contexto histórico e espácio-temporal — logo nada foi escrito diretamente sobre 2022 — “possibilitando muitas interpretações”.
Assume que é “viável” que morra um líder, já que existem tantos: “Com uma margem de tempo não muito grande, será sempre possível encontrar um grande líder que venha a falecer”. Porém, questiona: “Qual é o dom profético de dizer que é provável que uma senhora de 95 anos [Rainha Isabel II] morra este ano?”.
Apesar do ceticismo, outra pergunta impõe-se: E se a Rainha Isabel II morrer mesmo este ano? Para Mendes Pinto, mesmo que tal aconteça, seria necessário “acreditar que o dom da profecia existe e que tinha sido dado por uma entidade divina a este homem [Nostradamus]”. Na era da razão, da tecnologia e da ciência, crer que alguém terá tido acesso ao futuro é “irracional”.
Contudo, Mendes Pinto constata que caso as profecias sejam verdadeiras, seria necessário conseguir interpretá-las e chegar a dados concretos. Se fosse dito que em determinado país, a certa hora, por exemplo, um vulcão entraria em erupção, a sociedade teria “a possibilidade de evitar desgraças”.
Quem foi Nostradamus, o homem cujas profecias atravessaram fronteiras e alimentam crenças até hoje?
Nostradamus foi um dos maiores astrólogos e profetas na história da Humanidade – e, pelo meio, também terá sido médico e o homem de confiança de Catarina de Médicis. Nasceu em 1503, num recanto de França, em Saint-Rémy-de-Provence, e a sua reputação alicerça-se nas 1004 quadras de versos que escreveu. Estão coletadas no livro “As Profecias de Nostradamus”, lançado em 1555. Morreu a 2 de Julho de 1566, sendo sepultado de pé (para que ninguém pisasse os seus ossos) numa das paredes da igreja de Cordelieres, em Salon.
Mendes Pinto carateriza Nostradamus como “um mito urbano que nasceu no século XX”. O profeta viveu num contexto histórico propício para aquilo que escreveu, já que o estilo profético estava “em voga” no século XVI, marcadamente “peculiar em termos espirituais e místicos”, explica. Em Portugal, havia o Bandarra, sapateiro de profissão em Trancoso e que esteve na mira da Inquisição.
Os seguidores de Nostradamus afirmam que algumas das suas profecias vieram mesmo a acontecer, entre as quais a ascensão de Adolf Hitler e a morte do presidente Kennedy. “Possivelmente temos quem olhe para uma certa quadra e diga que a mesma não refere nada, como temos quem jure a pés juntos que aquilo é referente ao 11 de Setembro”, elucida. Neste último caso, os crentes costumam citar o seguinte verso:
Um fogo vindo do seio da Terra abalará as torres da cidade nova. E em consequência, dois grandes rochedos hão-de travar uma longa guerra até que a fonte de Aretusa faça de novo o rio sangrar”.
Para eles, “um fogo vindo do seio da Terra” é o petróleo que esteve na base da explosão, “abalará as torres da cidade nova” é por si só evidente e os “dois grandes rochedos” são a Cristandade e o Islão, que “hão-de travar uma longa guerra”.
Todavia, uma das críticas frequentemente dirigidas ao profeta é a ausência de nomes, datas e lugares. Dos poucos versos que têm data é o que, alegadamente, anunciava o Grande incêndio de Londres de 1666: “O sangue dos justos estará ausente de Londres. Ela vai arder subitamente no ano 66″, só que menciona apenas “no ano de 66”. Não é um grande pormenor, esclarece Mendes Pinto, pois no século XVI as cidades eram fundamentalmente de madeira e os incêndios eram frequentes.
Apesar daquela que parece ser uma lógica irrefutável, o investigador assevera que a interpretação de profecias é sempre feita “a posteriori”: “Nós tentamos encontrar no texto do Nostradamus aquilo que são factos que já aconteceram”.
O fim do mundo em 2012, supostamente uma das previsões de Nostradamus
Não faltam previsões que os seguidores de Nostradamus fixaram no tempo e que nunca se cumpriram. Uma delas foi a que apontava para o fim do mundo em 2012. E no entanto, perante tantas evidências de profecias não realizadas, porque é que as pessoas continuam a acreditar?
A cultura greco-latina e judaico-cristã está milenarmente enraizada na questão da profecia, responde Mendes Pinto. “O próprio cristianismo baseia a veracidade da crença de que Jesus é Cristo O Salvador com base em profecias”, continua o especialista. Exemplifica com o Oráculo de Delfos, utilizado na Grécia Antiga, no qual os monarcas procuravam salvaguarda na tomada das decisões, mas que dava asas a interpretações “ambíguas”.
O sociólogo José Pereira Coutinho sublinha que não há nenhum estudo sobre o perfil de quem acredita em profecias, no entanto há traços comuns em quem nelas confia, ligados a um menor capital cultural e à distância à fé cristã. “Quanto mais as pessoas têm convicções religiosas, no caso de Portugal são convicções católicas, menos estão disponíveis para crenças alternativas”, esclarece.
Procura-se dar sentido ao mundo, sobretudo no mundo atual em que a religião perdeu importância, reflete Pereira Coutinho. “As pessoas precisam de ter certezas daquilo que vai acontecer num mundo tão incerto e cheio de riscos em que nós estamos”, remata.
E Mendes Pinto segue esta linha de pensamento, já que a profecia “dá a ilusão, o conforto e a confiança, em termos espirituais” de que ao conhecer o futuro se toma melhores decisões. “É uma possibilidade de ter uma janela para um universo de certeza”, nota.