Um intérprete e facilitador ucraniano que trabalhava para a Radio France foi mantido refém e torturado pelas tropas russas durante nove dias.
Entre choques elétricos, espancamentos com a coronha de espingardas e uma execução falsa, Nikita (nome fictício), de 32 anos, esteve ainda privado de comida durante 48 horas enquanto foi mantido refém numa cave inundada.
Quem o denuncia é a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Nikita terá sido capturado no dia 5 de março no centro da Ucrânia. Liberto no dia 13, continua a recuperar do seu cativeiro, e contou à RSF como foram passados os seus dias de terror, assim como os momentos que envolveram a sua captura e libertação.
O contacto com a organização deu-se através do Press Freedom Center — Centro da Liberdade de Imprensa — localizado em Lviv. As buscas para o encontrar, contudo, tinham começado no dia 8 de março, depois de a Radio France ter comunicado o desaparecimento do intérprete à RSF.
Além dos relatos do próprio, transmitidos a membros ligados ao departamento de Auxílio e Advocacia da RSF nos dias 17 e 18 de março, a organização conseguiu anda reunir testemunhos de um familiar de Nikita, um homem que tinha sido mantido em cativeiro em conjunto com o facilitador ucraniano, assim como de dois jornalistas da Radio France.
Formado em gestão e advocacia, Nikita tem trabalhado como intérprete e facilitador da imprensa internacional na Ucrânia em regime de part time desde 2013. No passado, colaborou com a France 2, a BFMTV e a RFI. Em fevereiro, a empresa para a qual Nikita trabalhava a tempo inteiro começou a ter dificuldades em consequência do conflito na Ucrânia, pelo que o homem de 32 anos passou então a trabalhar como colaborador da imprensa a tempo inteiro, estando a colaborar com a Radio France.
Nove dias de terror preso em nome da liberdade de imprensa
No dia 5 de março, Nikita acompanhou uma equipa da Radio France durante uma reportagem no centro da Ucrânia, tendo a equipa ficado hospedada num hotel próximo da aldeia onde se encontrava a família de Nikita.
Depois de saber que a estrada para a aldeia tinha sido aberta, e preocupado com os constantes bombardeamentos que assolavam a região, Nikita planeou realizar uma visita rápida à família para se certificar se os seus familiares estavam bem. Depois de esvaziar o carro da equipa da Radio France do equipamento de reportagem, Nikita partiu no veículo para visitar a família.
Vítima de uma emboscada por parte das tropas russas, o seu carro foi atingido, segundo contou o mesmo à RSF, por entre 30 a 40 disparos, apesar de ter o sinal “PRESS” — sigla internacional utilizada por jornalistas para assinalar o seu trabalho em locais de conflito. Agachado dentro do carro, e durante uma tentativa de fuga da emboscada, Nikita acabou por chocar contra uma árvore.
Depois de sair do veículo e de se identificar como civil, o intérprete foi capturado por seis militares russos que “o atiraram para o chão, revistaram-no e espancaram-no”, mesmo com o tradutor a gritar que era um civil, escreve a RSF.
Já dentro de uma casa próxima do local da emboscada os militares russos inspecionaram o telemóvel de Nikita, onde encontraram informação relacionada com a procura de coletes à prova de bala e várias rotas terrestres planeadas, aumentando a suspeita dos soldados em como Nikita seria um possível batedor que colaborava com o exército ucraniano.
Depois de explicar aos captores ser um intérprete e facilitador para jornalistas estrangeiros, o ucraniano foi agredido com recurso à coronha das espingardas dos militares, tanto no tronco como na cabeça.
Nikita sentia pedaços de dente na sua boca e começou a tossir sangue”, escreve a RSF.
O ucraniano de 32 anos foi depois colocado numa vala, junto à carcaça de um cão morto, e levado a acreditar que seria executado, depois de um soldado afirmar querer verificar se a sua arma funcionava e de ter disparado um tiro que atingiu de raspão a cabeça de Nikita.
O tradutor foi depois transportado para o acampamento daquela divisão do exército russo, onde foi amarrado a uma árvore, já descalço e sem a aliança — roubada pelos soldados. Durante essa tarde, o facilitador foi espancado com barras de metal e coronhadas nas pernas. Os soldados, segundo explicou Nikita, pareciam estar a fazê-lo apenas por diversão.
Nos três dias que esteve amarrado a uma árvore no acampamento militar, outros dois prisioneiros juntaram-se a Nikita no cativeiro. Um destes civis que foram presos em conjunto com o intérprete confirmou os crimes cometidos pelos soldados russos à RSF.
No dia 8 de março, o três prisioneiros foram levados para outro local. À chegada, Nikita foi colocado no chão, com um soldado sentado nas suas costas, enquanto eram infligidos choques elétricos na perna do ucraniano. As perguntas que os soldados russos colocavam a Nikita, explicou, viriam da suspeita de que o facilitador dos jornalistas fosse na verdade um espião que utilizaria esta profissão como meio de disfarce.
Os outros dois prisioneiros que se encontravam com o homem de 32 anos foram também torturados, tendo um deles contado ter-lhe sido colocado um saco na cabeça que o impedia de respirar, ao mesmo tempo que era espancado pelos soldados russos.
O intérprete foi obrigado a assinar uma declaração de apoio à Rússia e à invasão da Ucrânia. Os três prisioneiros foram depois vendados e levados para uma cave inundada, onde foram deixados durante dois dias, até serem retirados do local depois de suplicarem para serem levados para um local menos gélido. No dia 10 de março foram levados para outra cave, onde se lhes juntou um quarto prisioneiro.
O interrogatório neste segunda cave, contudo, foi diferente do modo como foram feitas perguntas aos prisioneiros em momentos anteriores.
Segundo escreve a RSF, “Nikita conseguiu ver as suas pernas e botas, mas foi o suficiente para perceber que não eram membros das unidades de combate. As suas botas limpas e engraxadas e as calças passadas a ferro sugeriam tratar-se de membros da FSB ou da GRU” — a FSB é a agência formada depois da dissolução do antigo KGB, e a GRU é a a central de inteligência que reporta diretamente às Forças Armadas da Rússia.
Os prisioneiros foram soltos no dia 13 de março. Nikita foi solto numa floresta e, pensando que seria executado, fugiu dos seus captores até alcançar uma estrada. Depois de ser parado novamente por outra unidade militar russa, Nikita pensou que os nove dias iriam repetir-se, mas acabou por conseguir entrar num carro de civis ucranianos.
Se não o levarem, iremos matá-lo aqui”, afirmou na altura um soldado ao civil ucraniano, relutante inicialmente em transportar Nikita.
Dos quatro, um está desaparecido e outro nos cuidados intensivos
O intérprete ucraniano apresenta atualmente hematomas no corpo, uma perna inchada pelas pancadas com as barras de ferro e dificuldade em mexer as mãos em resultado dos choques elétricos. O médico que examinou o facilitador confirmou que o homem de 32 anos foi vítima de “traumas criminais”.
Dos restantes três prisioneiros, um encontra-se desaparecido, outro está internado nos cuidados intensivos e o terceiro, entrevistado pela RSF, conseguiu escapar com ferimentos menos graves.
O Nikita deu-nos um testemunho arrepiante que confirma a intensidade dos crimes de guerra perpetrados pelo exército russo contra jornalistas. Passar o seu testemunho para a procuradoria do ICC [Tribunal Penal Internacional] é o mínimo que podemos fazer por este corajoso facilitador”, explicou Christophe Deloire, secretário-geral da Repórteres Sem Fronteiras, organização que planeia apresentar queixa no Tribunal Penal Internacional.
Interrogado pela RSF sobre o porquê de terem sido soltos e não executados, o prisioneiro que escapou com lesões menos graves afirmou: “Acho que eles não tiveram a coragem de cavar valas.”
Além de Nikita estar agora em segurança e a recuperar, a família do intérprete ucraniano também conseguiu escapar da zona de bombardeamentos.