Imagine que naquela altura ainda se pagava em escudos, e que a introdução do euro forçou uma ginástica de câmbio mental permanente, e de atualização das etiquetas com os preços, com calculadora em punho. Em 2002, não só a moeda era outra, também as modas se demarcavam, e muito, das tendências atuais. Os folhos imperavam, as golas eram generosas, e os vestidos smock para as meninas dividiam atenções com as camisas de xadrez para os rapazes. “Tudo muito clássico, bem mais formal”, admite Inês Morais Leitão, que assistiu à evolução gradual, e natural, do gosto e da perceção sobre as roupas para crianças, num passo rumo ao conforto extra e à flexibilidade. “Há 20 anos era impensável ter uma peça unissexo para criança, achavam que tinha enlouquecido. Não tinha, só se fosse uma camisola de lã que a rapariga vestia. Hoje, estas calças, camisas, etc dão para todos, mesmo os padrões e os tons”.

Recorda como o guarda-roupa infantil no masculino se resumia quase sempre a camisas, camisolas de lã, calças e calções, e como atualmente uma peça em tons rosa/tijolo para rapaz não borra a pintura, da mesma forma que o fosso que começava desde o berço se foi atenuando. “Em bebé, então, notava-se muito a diferença. Quando abri, só usava branco, rosa e azul, mais nada. Depois começámos a introduzir os verde água. Quando pus os cinzentos…foi uma revolução”.

Malhas de algodão, turco, materiais mais confortáveis, dominam agora as preferências de quem entra pela Maria Gorda, a loja para bebé e crianças que há duas décadas abria portas em Campo de Ourique. Inês recorda perfeitamente a excitação do dia de inauguração, quando a 11 de março de 2002, pelas dez da manhã, aguardaram pelos primeiros clientes no número 62A da Rua 4 da Infantaria. “Estivemos aqui até às quatro da manhã a montar tudo na véspera. No dia a seguir, às dez e meia, lá entrou uma cliente e perguntou “esta loja é nova?”. E pronto.”

Loja de roupa para crianças “Maria Gorda”, que celebra 20 anos de existência. Inês Bezelga, proprietária. Lisboa, 06 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

© Filipe Amorim/OBSERVADOR

Naquele tempo, o bairro era conhecido pelas lojas de decoração, e pela ainda reduzida oferta em termos de roupa infantil, resumida à Nós e Tranças e à Bonchic, “o resto eram as grandes superfícies”. Envelhecido, o conjunto de ruas contava ainda os anos para ver chegar novas famílias e assistir ao boom de comércio que hoje o caracteriza. Entretanto, na Maria Gorda, seguia-se o ritmo do boca a boca. “Correu bem”, recorda Inês, a partir da zona inferior da pequena loja, que ao longo dos últimos anos se submeteu a obras por três vezes. Uma das alterações maiores envolveu abdicar da célebre reentrância que funcionava como quarto de brincar para os miúdos que por aqui passavam – em contrapartida, ganhou espaço extra para pendurar os vestidos, casacos, e outras peças coloridas, e sobretudo para armazenar os stocks segundo o processo físico e o digital, outra novidade em relação ao começo do milénio. “Não havia forma de comunicar, era esperar que alguém aparecesse. O Facebook foi uma ótima ferramenta, hoje é o Instagram. Nem site havia. As pessoas sabiam que se recebia coisas novas à quinta-feira e iam aparecendo. Essa transformação é engraçada”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há coisas que não mudam, como o atendimento personalizado (que permite satisfazer os pedidos de um rebento mais exigente), a passagem de testemunho de geração a geração, com os outrora filhos a pensarem agora em vestir a sua prole, ou a qualidade dos artigos, alguns deles com quase tantos anos de vida como a loja – que o diga a cliente fiel que há pouco apareceu com um fofo perfeitamente atual, com corte simples, comprado algures em 2007 e em perfeito estado de conservação.  “Uma pessoa pode vir cá, gosta de um tecido, mas a filha prefere uma saia curta em vez de comprida, se eu ainda tiver tecido, faço. O atendimento é um pouco nesse registo”.

Loja de roupa para crianças “Maria Gorda”, que celebra 20 anos de existência. Inês Bezelga, proprietária. Lisboa, 06 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADORLoja de roupa para crianças “Maria Gorda”, que celebra 20 anos de existência. Inês Bezelga, proprietária. Lisboa, 06 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

© Filipe Amorim/OBSERVADOR

O regime de proximidade só é compatível com um negócio como este, de pequena dimensão “feito com muito cuidado”, razão pela qual Inês Morais Leitão, que até à pandemia dividiu sociedade com as cunhadas, nunca transformou a Maria Gorda num projeto de maior escala, já que dar esse pulo obrigaria a rever a estrutura. “Tinha que ir para fábricas. Eu desenho as peças e as coisas são feitas num atelier de costureiras aqui perto de nós, com quem trabalho há vinte anos; é um acompanhamento semanal. Não sei se as pessoas têm noção do trabalho que cada peça dá. É o fecho que tem que ser escolhido, os botões, a linha para alinhavar…”

Contas feitas, os produtos enquadram-se num posicionamento médio alto e, voltando à conversa dos escudos e euros, admite que talvez a conta pesasse menos no começo dos anos 2000 — “os nossos produtos começaram por não ser muito caros, hoje talvez sejam mais.”. Não por acaso, a marca caminhou no sentido de apurar o foco. Se por aqui encontra peças para os primeiros meses de vida, o grosso da oferta é pensado para a faixa dos seis aos 10 anos, a predileta da fundadora. “Já fui mais ligada a roupa para bebés. Hoje há muita oferta de grandes superfícies com coisas queridas e sinto que as mães novas não têm o poder de compra que as mães novas de há vinte anos tinham. As miúdas veem-se aflitas.”.

Loja de roupa para crianças “Maria Gorda”, que celebra 20 anos de existência. Inês Bezelga, proprietária. Lisboa, 06 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Da mesma forma, a adolescência não é o alvo prioritário. As peças disponíveis vão até aos 14 anos, de facto, mas mais a pensar naqueles 12 anos que vestem um número acima – ainda que, lembra Inês, haja sempre pedidos de clientes mais velhas, adultas incluídas, de olho em algum vestido para a praia, por exemplo.

Dos lençóis da Pronto a Dormir à roupa para vestir e a história do nome (que hoje seria outro)

Formada em Psicologia, Inês Morais Leitão ainda chegou a estagiar na área, até ao dia em que, por graça, começou a dedicar-se à confeção. Ainda as filhas eram pequenas quando, com uma amiga, lançaram a Pronto a Dormir. O projeto, meio caseiro, respondia a uma falha no mercado, também no segmento infantil: “lençóis de cama, capas de edredon, e esse género de coisas“. O pequeno showroom que mantinham na Avenida Álvares Cabral nem chegava a ter as portas abertas, funcionando praticamente em circuito fechado, face aos pedidos de amigas. “Também havia pouca roupa portuguesa para crianças e começámos a fazer uns fofos, em poucas quantidades, e as pessoas começaram a gostar”, recorda Inês, recuando às origens da Maria Gorda. Cedo percebeu que podiam crescer e abrir de vez ao público, e assim começou a folhear jornais em busca do espaço certo para desenvolver o negócio. “Vimos esta loja e fechámos o negócio no mesmo dia em que tinham posto o anúncio. Estava precisadíssima de obras. Passado um mês abrimos.”

Sócia das cunhadas durante 18 anos, lançou-se a solo há cerca de dois, ainda ao leme dos desenhos das peças, como desde o começo, apesar de ter zero formação em Moda. E se no começo esses esboços eram ainda demasiado amadores e rebuscados, a modista lá percebia a intenção, seguindo o auxílio de antigos modelos. “Assim se foi crescendo. Tenho não sei quantos moldes novos. Hoje já consigo pegar numa sweatshirt e transformar num vestido”.

Loja de roupa para crianças “Maria Gorda”, que celebra 20 anos de existência. Inês Bezelga, proprietária. Lisboa, 06 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

© Filipe Amorim/OBSERVADOR

Em retrospetiva, por motivos que dispensam apresentação, o orelhudo nome que escolheu para dar nome à casa dificilmente teria peso numa decisão atual. “Hoje não o poria. Mas na altura era uma coisa emocional, muito repentina. Vem da minha filha mais velha, Maria, que sempre tratámos por “Ia Gorda”. Assim ficou”. Se a marca mudou de estilo, algo inevitável até para garantir a longevidade, alterar estas duas palavras chave não é nada que Inês não tenha equacionado, admitindo, ao mesmo tempo, que essa transição talvez não fosse a política mais sensata. “Exploramos mais o MG no logo”, descreve, como solução. “Mesmo para as miúdas mais velhas é estranho vestirem-se na Maria Gorda.”

De regresso às mudanças registadas no curso destes últimos anos, vale a pena recordar uma tendência que caiu em desuso. Se antigamente era chave vestir os irmãos de igual, hoje “já não se procura tanto”, e quem decide prefere explorar a mesma família de cores quando pensa em mais do que uma criança. Na balança do tipo de compras, o prato das visitas presenciais continua a ter mais força, enquanto as vendas online representam cerca de 30% no negócio. “As pessoas ainda gostam de vir à loja e tocar, apesar de isto ter levado uma grande reviravolta. Tenho site há anos e mexia pouco. Com a pandemia os clientes habituaram-se ao online, mesmo os de Lisboa, com a opção de levantar na loja. Mas normalmente também já conhecem a marca e os tamanhos.”. Em Portugal, destacam-se as encomendas oriundas do Porto. Em Espanha, Madrid e Valencia lideram nos pedidos, e há ainda “um ou outro país europeu”.

Loja de roupa para crianças “Maria Gorda”, que celebra 20 anos de existência. Inês Bezelga, proprietária. Lisboa, 06 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

© Filipe Amorim/OBSERVADOR

Se esta história começa com padrões tradicionais e a transição de divisa, o mais certo é que esta última se mantenha inalterada nos anos que se seguem. Quanto às preferências de guarda-roupa para os mais novos, tudo em aberto. Por um lado, as estações deixaram de ter as suas fronteiras tão marcadas, com os materiais, outrora mais pesados, a cederem lugar às práticas túnicas que se resguardam com casacos quando o frio aperta — em todo o caso, continuam a apresentar as habituais duas coleções, a de primavera-verão e a outono-inverno. Por outro, será que os velhos folhos e golas poderão vir a fazer o seu regresso triunfal? “Acho que podem voltar. Noutros moldes, com materiais mais confortáveis. As pessoas dão muito valor a isso, a roupa prática veio para ficar. Os tecidos não podem ser tão hirtos mas nunca se sabe.”

100% português é uma rubrica dedicada a marcas nacionais que achamos que tem de conhecer.