Setenta e oito toques na bola, 35 passes, sete duelos ganhos, cinco cruzamentos, quatro passes longos certos, três tackles, duas oportunidades de golo criadas, uma assistência. O Manchester City-Liverpool foi um jogo entre os melhores, João Cancelo foi um dos melhores entre os melhores. Outra vez. Mais uma vez. “Você foi cancelado”, escreveu mesmo a conta do Twitter dos citizens, num vídeo onde mostrava mais um duelo ganho pelo português frente ao melhor marcador da Premier League, Mohamed Salah. E quase de forma natural o encontro chegou ao fim com a conclusão inevitável por parte dos especialistas que estavam em campo os dois melhores laterais da atualidade, ambos destros mas com o jogador da Seleção a jogar na esquerda ao contrário de Trent Alexander-Arnold, de novo com uma série de jogadas a fazer diferença pelos reds.

Era mais um jogo para Guardiola, era mais uma final para Klopp. No fim, deu empate técnico — mas com mais sorrisos para um lado

Como destacava o The Times na edição desta terça-feira, o português é “o ponta de lança de uma nova geração de defesas robôs”. “Laterais como João Cancelo tornaram-se jogadores all-in-one. Contra o Liverpool ele foi lateral, foi médio e foi ala num só, correndo todo o lado esquerdo do campo”, argumentava. Mais um entre muitos elogios de uma carreira que atinge o ponto alto (até ao momento) com 27 anos. Já igualou o maior número de golos numa época (três), já bateu o maior número de assistências numa época (nove), vai superar nos próximos dias o maior número de jogos numa época (43). Mais do que isso, é hoje um jogador muito diferente. Melhor, mais completo, hiper evoluído, capaz de fazer o que for preciso em qualquer posição tendo o conhecimento tático do jogo que lhe faltava na identidade criada de Pep Guardiola.

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No entanto, nem tudo foram facilidades. Longe disso. E o jogador recordou à magazine da Champions todas as dificuldades que teve na carreira, sobretudo quando perdeu a mãe com apenas 18 anos num acidente de automóvel quando estava na formação do Benfica. “Era o amor da vida. Senti-me no fundo do poço”, diz.

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“Venho de uma família humilde. Em Portugal às vezes não há trabalho, o meu pai teve de ir para a Suíça para ganhar dinheiro para suportar a família. Vivi com os meus avós maternos e raramente via a minha mãe durante o dia. Houve uma altura em que tinha três trabalhos diferentes e só a via ao jantar. Os valores que os meus pais me ensinaram foram os da humildade, do amor, da dedicação e do compromisso, valores que aprendi deles desde pequeno”, começou por contar João Cancelo, antes de se focar de novo na mãe.

João Cancelo, o miúdo formado no Benfica que brilhou no Valencia e ajudou a Juventus a chegar a Ronaldo

“A minha mãe é a pessoa que mais admiro no mundo. Peço desculpa ao meu pai, sei que não vai levar isto de forma pessoal, mas a minha mãe é mais como eu. A personalidade dela é mais parecia com a minha. Só eu sei o que ela fez por mim, as dificuldades que passámos juntos, as conversas que ela teve comigo quando não havia dinheiro em casa. Sempre lhe disse que faria de tudo para lhe dar um futuro melhor para que ela não tivesse nunca mais de trabalhar. Hoje, apesar de estar onde está, faço tudo para que se sinta orgulhosa de mim. Sempre foi uma lutadora. Além dos trabalhos, encontrou sempre tempo para me levar e buscar aos treinos. São pequenos valores que me foi passando: não interessa o número de dificuldades, devemos ter sempre a força para superá-las. Até quando estava cansada, tinha sempre tempo para mim e para o meu irmão. Hoje tento dar à minha família, à minha filha e à minha namorada, o amor que ela me deu”, destacou.

“[Depois da morte da minha mãe] Senti-me como um robô que tem de fazer o seu trabalho, depois ir para casa, depois vem outro dia – dia após dia. Quando perdi a minha mãe, não gostava do meu futebol. Estava a jogar porque tinha que jogar. Pensei realmente em desistir porque não fazia mais sentido continuar a jogar futebol. As pessoas do Benfica estavam constantemente a ligar, a pedir-me para voltar porque acreditavam no meu potencial. O meu pai deixou as coisas acalmarem e depois falou comigo. Ele disse que tanto ele como o meu irmão precisavam de mim, precisavam que tivesse forças para continuar porque tinha que ficar e não podia voltar para a Suíça. Eu já tinha assinado um contrato profissional com o Benfica e muito do meu dinheiro foi usado para sustentar a minha família. Por isso, decidi voltar a jogar. No começo não foi fácil. Não tinha força, nem vontade, mas aquela conversa com o meu pai e o amor que tenho por esse desporto fez-me superar tudo”, explicou o lateral sobre esse momento quando tinha 18 anos.

A semana que João Cancelo precisava, da entrevista sobre a mãe ao regresso aos (grandes) golos

“Gostaria muito de poder conversar com a minha mãe porque falta sempre alguma coisa. Mesmo quando alcanço algo importante, há sempre esse sentimento. É como se eu sempre tivesse um vazio no coração porque ela não está fisicamente ali. Em Portugal, vou sempre ao cemitério para a ver. É como uma obrigação que tenho. É onde me sinto bem, ao lado dela. Mesmo que ela não esteja fisicamente lá, sinto-me bem. Limpa a minha alma, as minhas más energias e ajuda-me a viver mais feliz”, acrescentou.

“Grande parte do meu amor pelo futebol deve-se à minha mãe.Tive ótimos momentos com ela. Muitas vezes, quando estou no estádio, aqui em Manchester ou mesmo com a Seleção, sinto que ela está a assistir. Eu  olhava sempre para as bancadas antes de um jogo começar, mas agora ela não está lá. Achei que nada superaria o amor que tinha pela minha mãe mas nasceu a minha filha, que é um amor inexplicável. É a melhor coisa depois de um dia duro e cansativo de trabalho: chegar em casa e receber um abraço e um beijo da minha filha. Algumas coisas não têm preço. Não importa quanto dinheiro ganhemos e não importa quão boa seja a nossa qualidade de vida, a melhor coisa da vida são os pequenos momentos que os nossos filhos nos trazem”, concluiu João Cancelo, numa entrevista muito difundida (e elogiada) em Inglaterra.