Em semana de apresentação do Orçamento do Estado, o coordenador do PCP na Comissão de Orçamento e Finanças, Bruno Dias, diz que esta proposta está “mais distante” do que a de outubro do ano passado, mas reconhece que existem ainda medidas negociadas pelo PCP que estão no Orçamento deste ano. Quanto à participação de Volodymyr Zelensky na Assembleia da República, o PCP ainda não adiantou se vai marcar presença, mas critica “o papel” em que o Parlamento se coloca ao “incentivar a propaganda de guerra”.

[Ouça aqui o Sofá do Parlamento com a entrevista ao deputado Bruno Dias e o primeiro puxão de orelhas de Augusto Santos Silva ao presidente do Chega, André Ventura]

Bruno Dias, do PCP: “AR não devia fazer parte da propaganda de guerra”

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Já tem muitas páginas sublinhadas e muitas notas tiradas nestas primeiras horas?
O trabalho já vem de trás. Há um processo de discussão e de trabalho que agora entra mais no concreto em relação à proposta do Governo que foi apresentada, mas como toda a gente calculará a proposta é muito idêntica à de outubro.

Antes de irmos às propostas. Esta é uma fase interessante e desafiante de preparar o documento, a argumentação e propostas alternativas?
É de grande responsabilidade. Nesse aspeto, no PCP temos esta forma diferente de trabalhar, em equipa, que determina a abordagem do PCP nestas discussões. Naturalmente que depois há uma face mais visível, os que dão entrevistas, os que falam na Assembleia, mas no PCP ao longo do tempo tem sido sempre esta marca própria: do trabalho coletivo.

Nessa preparação quase não se nota a diminuição do grupo parlamentar, tendo em conta que as pessoas continuam a colaborar? 
Há uma coisa muito factual. Existirem menos deputados do PCP coloca condições mais desfavoráveis para intervir, desde logo na disponibilidade de quem vai às discussões mas verdade seja dita: aquilo que ao longo do tempo sempre foi assim e que agora continua a ser é que há muito mais PCP para lá da Assembleia da República. A visão dos partidos em função de quem está na AR não funciona para o PCP. Nós damos uma primazia à colaboração entre a frente parlamentar e a organização do partido, que dá outro rigor, outra segurança que radica da experiência pessoal das próprias pessoas.

O PCP esta quarta-feira já falou numa proposta de orçamento que está ainda mais desajustada. Isso é já um sinal de que o voto vai ser contra face ao que é conhecido? 
Sim, a situação é muito mais grave do que era pelas situações que são conhecidas. Nós já estamos a sentir, não apenas o impacto da guerra e das sanções, mas do aproveitamento que certos setores e certos interesses têm feito relativamente a essa situação. Há muito mais dificuldade na vida das micro, pequenas e médias empresas, nos setores produtivos, nas famílias. As questões que têm a ver com a política de rendimentos, com a forma como se vão mobilizar os recursos do País para responder aos problemas que já eram graves e que já exigiam uma resposta, que tardava e que falha, então agora teríamos forçosamente de ir mais longe e isso não está à vista.

Mas por exemplo, a IL diz que o PS não deixou cair as exigências da esquerda. Este é um Orçamento que ainda tem a marca do PCP? 
Este Orçamento, quando coloca na lei algumas das questões que o PCP lutou muito e durante muito tempo para serem integradas, continua a ter a redução tarifária dos transportes públicos, mas também era melhor. Vamos discutir se vamos retirar a discussão tarifária para afastar as pessoas do transporte público? Vamos discutir cortes nas reformas em vez dos aumentos? É verdade que nos tempos de direita a discussão era dos cortes, mas em 2015 a discussão passou a ser sobre os aumentos, mas hoje ainda é mais premente a questão de que os aumentos das reformas são muito insuficientes. Numa primeira análise ao documento, nós dissemos que no aumento extraordinário de pensões, de extraordinário sobra só o nome. Os aumentos que são apontados pelo Governo são absorvidos pela inflação e sem falar ainda do crescimento dos preços que ainda se vão registar.

Não colhe o argumento de que aumentar salários não é a resposta que é necessária agora? 
Além de ser uma questão fundamental de distribuição de riqueza, mesmo para a economia do país, na componente da procura interna há uma verdade incontornável: só se pode vender o que os salários puderem comprar. Existe um aumento exorbitante do custo de vida em que a economia está a sofrer, por arrasto, da falta de poder de compra. Nós não estamos de todo a falar de fenómenos inflacionistas resultantes de aumentos de salários. Pelo contrário. O que está a acontecer é o aproveitamento oportunista de alguns interesses que, à pala do efeito psicológico da guerra, como dizia o representante das petrolíferas, o combustível que estava refinado e que tinha preços bastante distantes do que está a ser praticado, disparou nas gasolineiras e passamos nós a pagar a gasolina a 2,10€ ou a 2,15€. Nem quando o barril de petróleo tinha preços elevados, o gasóleo tinha estes preços. O que há é uma perda de poder de compra que tem que ser travada e um efeito recessivo da atividade económica que tem que ser olhada com muita responsabilidade. Quando discutimos escolhas para o Orçamento do Estado nós alertamos que é muito mais importante para as pequenas empresas poder aumentar salários do que restringir aumentos das pensões e deixar a economia em profunda dificuldade.

Aproveitamento do PS? “Aconteceu na legislatura passada, aconteceu muito na campanha eleitoral e acontece agora outra vez”

O PCP não entende que o PS fez o exercício de ficar com algumas das bandeiras que trouxeram? As creches gratuitas, o aumento das reformas. Embora a ritmos diferentes, eram bandeiras do PCP
Isso aconteceu na legislatura passada, aconteceu muito na campanha eleitoral e acontece agora outra vez. Muitas destas medidas a partir do momento em que entraram em vigor, algumas delas ao fim de dezenas de anos de luta, não é fácil retirá-las de repente porque as pessoas as sentem nas suas vidas. E as coisas que são positivas na vida das pessoas, aqueles que durante anos resistiram, lá foram admitindo e aceitando. Naturalmente que, do ponto de vista de capitalizar politicamente essas decisões, o Governo está por aí. E se estava no fim da legislatura passada, na aplicação destas medidas, fizeram cartazes e propaganda.

Nessa matéria o primeiro-ministro fez o que tinha prometido. Apresentou o orçamento na campanha como o que ia entregar agora e as alterações que fez foram apenas para responder à guerra.
E foram muito pouco significativas. Dizemos a guerra e o conjunto da situação. O SNS continua a ter problemas que estão mais agravados hoje, o acesso à habitação está mais complicado. No dia-a-dia das pessoas esses problemas estão bem mais graves do que em outubro e as soluções têm que ir mais longe. A critica que fazíamos em outubro, quando estávamos disponíveis para fazer o trabalho para que o documento respondesse às necessidades do país, coloca-se agora ainda com mais força.

Que trabalho é que o PCP acredita que pode fazer na especialidade para melhorar o documento? 
Nós sempre tivemos ao longo dos anos uma atitude em relação ao debate orçamental muito clara: firmeza na denúncia e na rejeição das más opções e das opções que não correspondem à resposta que o país exige. Com muita clareza apontamos os problemas das propostas dos Governos e ao mesmo tempo com uma postura de grande responsabilidade, dedicação e empenho apresentamos propostas para resolver esses problemas. No SNS, medidas para fixar os profissionais. Na escola pública, criando condições para existir o investimento necessário e a questão transversal do investimento público como dinamizador da atividade económica. Ainda a questão das carreiras profissionais, que é uma questão fundamental, em que a instabilidade e a falta de perspetiva de futuro são as dúvidas que mais pesam no futuro dos jovens. Continuaremos a apresentar estas propostas com o mesmo empenho por duas principais razões: porque se houver vontade política respondem aos problemas das pessoas e algumas destas questões já fazem parte da nossa realidade diária

Mas continuam a existir canais de contacto com o PS? 
Nós sempre tivemos esta postura muito clara: a justeza, a importância, a oportunidade e a adequação das medidas para serem aprovadas e implementadas não deve depender de canais privilegiados. É uma questão de responsabilidade política e da nossa parte sempre houve essa clareza no debate. Eu diria mesmo que quem connosco tem lidado ao longo dos anos pode atestar esta expressão: a lealdade no trabalho, a lealdade na discussão. O que nós propomos e defendemos é o que levamos à prática no trabalho. Nós no inicio, logo em 2015, dissemos “o exame comum do Orçamento do Estado”, numa referência ao trabalho conjunto, à discussão sobre as melhores soluções. Não havia cheques em branco assinados à partida e não existiram. Essa verticalidade no debate político foi uma marca nossa e continuará a ser marca na nossa intervenção. O quadro é agora mais desfavorável, há uma maioria absoluta do PS, há uma correlação de forças que não vai ser mais positiva mas essa luta não pode deixar de ser feita e nós estamos cá para a fazer.

Falou na maioria absoluta. Na anterior maioria do PS, com José Sócrates, já era deputado. Nestas primeiras semanas há mais semelhanças ou mais diferenças entre uma e outra? 
Do ponto de vista do estilo, da atuação e do tom, julgo que nem interessa muito. Há quem goste muito de fazer psicanálise dos políticos e dos primeiros-ministros. Parece-me que o mais importante é observar desde já a resposta objetiva, as propostas e os compromissos assumidos. E esses compromissos, olhando para o programa de Governo e para o Orçamento do Estado, ficam muito aquém do que seria urgente e necessário. Isso significa que quando há uma opção de fechar a porta a outras opções políticas, essa escolha num quadro de maioria absoluta torna mais difícil a resolução dos problemas e torna o quadro mais negativo e preocupante. Esse é o alerta que temos colocado. As pessoas ainda agora votaram PS porque tinham medo que viesse aí a direita. Havia muito a ideia do empate técnico, na última semana da campanha, e uma falta de clareza no discurso do PSD em relação à extrema-direita e, antes que desse para o torto, votaram PS. E essas pessoas já estão a começar a desiludir-se. Já estão a enfrentar uma maioria absoluta que tem muito pouco a ver com as expectativas e esperanças que as pessoas depositaram na tentativa de não quererem virar à direita e de regressar às troikas. Esta perda de esperança é um sinal preocupante que não podemos deixar de dar.

Sobre a sessão com Volodymyr Zelensky. O PCP votou contra a vinda do presidente ucraniano. Vão marcar presença nessa cerimónia? 
O alerta que é preciso sublinhar é se Portugal e a Assembleia da República devem contribuir para que haja um caminho de uma solução política e negociada para atingir a paz ou se devemos agir no sentido de dar mais força à propaganda de guerra e à escalada de confrontação. Esta é uma questão muito objetiva. Ouvimos muitas pessoas a falar sobre esta tragédia no leste da Europa e a pergunta que acho que se deve fazer é se essas pessoas estão decididas a prosseguir uma guerra até à morte do último ucraniano? Então a solução para esta tragédia é mais bombas, mais armas e mais mortos? Ou vamos apelar a que haja um cessar-fogo? Não? Então pelos vistos é na lógica de incrementar as sessões que têm a ver com propaganda de guerra, com apelos a zonas de exclusão aérea, de intervenção das forças aéreas e de exércitos de outros países. Uma escalada até onde? Até a uma guerra mundial com potências nucleares? Este é um caso muito sério e trágico e a ideia de que é preciso ir mais longe no conflito armado não está a ser conscientemente considerado por toda a gente.

Mas por não concordarem com essa sessão não vão marcar presença?
Aquilo que neste momento importa sublinhar é que a Assembleia da República não devia estar a fazer parte de uma operação de propaganda de guerra e sobre isso é o que tenho a dizer.

Mas é uma decisão que ainda vai ser tomada pelo grupo parlamentar?
Não tenho mais nada a dizer sobre este assunto. A Assembleia não devia estar envolvida numa operação de propaganda de guerra e essa experiência existe até noutros parlamentos. O governo de direita da Grécia foi humilhado perante uma operação de comunicação política por parte do presidente da Ucrânia que passou a palavra a um representante do regimento Azov, uma milícia nazi incorporada nas forças armadas da Ucrânia e que levou a que vários deputados abandonassem o Parlamento.

Era isso que o PCP podia querer evitar, o abandonar a sala a meio do discurso. O PCP é um partido tido como institucionalista
Isto não são fait divers. Estamos a falar de política de Estados e de um posicionamento que é grave e negativo, de países da União Europeia. A maioria dos países do planeta não estão a enveredar por este caminho de apelar às armas e à escalada do conflito. A solução não é continuar a guerra, é apelar ao cessar-fogo. O que quero partilhar é que a Assembleia da República faz mal, enquanto órgão de soberania, em colocar-se neste papel e o nosso país está numa situação que não devia ser esta, de contribuir para irmos mais longe na guerra. A guerra tem que parar e as mortes têm que parar. A população civil está a ser massacrada e não é desde 24 de fevereiro, é desde 2014.

Vou só insistir ao contrário. Com tantas criticas, se marcarem presença não é incoerente?
Julgo que já disse tudo o que tinha a dizer e não quero ir mais longe neste assunto.