Apesar de ser conhecida como romancista, foi como poeta que Margaret Atwood se estreou. Em 1961, quando ainda frequentava a Universidade de Toronto, publicou de forma independente um pequeno livro, Double Persephone. O título, uma referência à rainha do submundo, filha de Deméter, sugere alguns dos temas recorrentes na obra de Atwood: a questão do duplo, do espelho, do mito e do feminino.
Na história de Perséfone, roubada à mãe e levada à força para o mundo dos mortos por um deus que se dizia apaixonado por ela, esconde-se também uma das questões centrais da produção poética da escritora canadiana: as relações amorosas entre homens e mulheres. Em Atwood, o mundo dos relacionamentos pessoais é muitas vezes descrito com recurso a uma linguagem “militar”, como se o amor fosse sempre uma batalha entre forças opostas, muitas vezes, mas nem sempre, desiguais.
Estes temas foram definitivamente abraçados por Atwood nos anos 70, quando publicou dois importantes livros de poesia que exploram as relações contemporâneas entre homens e mulheres e a linguagem através da qual essas são construídas: Políticas de Poder (1971) e You Are Happy (1974). O primeiro foi recentemente publicado em Portugal pela editora Relógio d’Água, numa tradução da poeta Ana Luísa Amaral
Políticas de Poder tornou-se famoso pela associação ao movimento de libertação das mulheres (MLM), um momento-chave na luta pelos direitos das mulheres. Atwood tem repetidamente negado que o conceito do livro tenha sido diretamente influenciado pelo MLM, apesar da evidente ênfase dada às questões de género e do poder, pessoal e político, abordadas em todas as obras da autora, e talvez de forma mais evidente nos romances A História de Uma Serva (1985) e Os Testamentos (2019), sobre uma sociedade patriarcal onde as mulheres não têm voz, apenas função.
Pode parecer estranho que uma autora que sempre deu destaque a questões do universo feminista tenha negado a existência de uma ligação entre um dos seus livros e o movimento internacional de luta pelas mulheres. Mas, para Atwood, política e poder são questões que ultrapassam o género, porque se ligam a todos os aspetos da vida, incluindo aos mais pessoais, íntimos e banais. Para ela, “o poder é o nosso ambiente”.
“Vivemos rodeados por ele: ele penetra em tudo o que somos e em tudo o que fazemos, de forma invisível e silenciosa, como o ar”, afirmou, no ensaio “Notes on Power Politics” (1973).
No ensaio “Margaret Atwood on Questions of Power” (2021), Pilar Somacarrera defendeu que, para a escritora canadiana, as estruturas que sustentam os contextos sócio-políticos e culturais são os mesmos que sustentam os relacionamentos humanos. Na opinião de Somacarrera, a estas estruturas deve ainda adicionar-se um terceiro elemento, o mitológico. Atwood sempre recorreu aos arquétipos da mitologia clássica para explorar as questões que lhe são próximas. Foi isso que fez em Double Persephone, mas também em You Are Happy, centrado em Odisseus e na sua viagem de regresso a casa marcada pelo encontro com várias figuras femininas, como Circe.
A vertente mitológica não é tão evidente em Políticas de Poder, mas também está lá, subtil, em poemas como “Ele volta a aparecer”, no qual uma monstruosa figura masculina de três cabeças e seis olhos brilhantes recusa o pedido de amizade da figura feminina; ou em “Eles vão comer fora”, no qual a narradora revela ser uma feiticeira ao transformar um garfo numa poderosa varinha de condão que faz a sua companhia para o jantar voar sobre a cidade.
“ergo o garfo mágico
por sobre o prato de arroz frito com carnee mergulho-o no teu coração.”
Na visão de Atwood, qualquer relacionamento humano deve ser compreendido dentro desses três parâmetros, que por sua vez são essenciais para entender a sua obra e, em especial, a sua linguagem poética, minimalista e afiada (como o anzol que atravessa o olho no primeiro poema de Políticas de Poder), violenta e bela, como uma relação íntima pode ser.
É precisamente a violência, física mas também psicológica, que pode existir numa relação que a poeta escolheu enfatizar em Políticas de Poder, como forma de demonstrar as diferentes formas que o exercício do poder pode tomar. O resultado é uma poesia de extremos, construída em cima de polos opostos e forças contrárias, que chocam, provocando ondas que reverberam, abalam e magoam – as personagens, mas também o leitor.
A voz da narração é sempre a de uma mulher, que surge quase sempre no papel de vítima, mas por vezes também na de agressora. Faz parte do “jogo”, que não tem nada de divertido, mas que vicia, como qualquer jogo e como o próprio poder. Essa dependência, típica das relações destrutivas, é apenas um dos problemas assinalados por Atwood na coleção de poemas, que, segundo a própria autora, explora os diferentes motivos que podem levar um casamento à ruína como forma de mostrar o que o pode tornar feliz.
Na maioria dos poemas, é a figura masculina que domina e dirige a cena, como um general magnífico e heroico. A mulher deixa-se fascinar, aguentando passiva todo o tipo de situações e o machismo e violência do companheiro. Em troca, oferece ao leitor os sonhos onde o imagina morto. Às vezes, não é ela a única que sofre, também faz sofrer, numa luta sempre desigual de forças de vontades em que ela parece estar sempre em desvantagem. Ou será mera ilusão?
Em alguns momentos, a violência é equilibrada, como em “Magoamo-nos um ao outro”, ao ponto de levar à anulação das duas forças (“O acidente deu-se”) ou à constatação óbvia de que as coisas não estão a correr bem (“Há melhores formas de fazer isto”). A tragédia parece inevitável – paira no ar um cheiro a catástrofe. E se o é, porque persistem? Atwood não dá respostas (tudo é ambíguo e incerto no mundo da dupla Perséfone), apenas expõe. E faz pensar.
“chocamos um contra o outro às cegas e
caímos, os bocados de nos
misturam-se como desastre
e despedaçam-se no chão deste quarto
numa prancha de fragmentos prateados”
O mais famoso e pequeno poema de Políticas de Poder, “Fixas-te em mim”, composto apenas por dois dísticos, compara a maneira como dois indivíduos se conjugam com um anzol de pescar que se prende num olho. Na interpretação de Somacarrera, a ambiguidade entre o “olho” e o “eu” feminino sugere que a voz feminina do poema tem consciência da agressão de que é vítima e a aceita (não é possível um anzol fixar-se num olho sem provocar dor e também não é possível aí permanecer sem criar desconforto).
Contudo, se abrirmos os horizontes de interpretação, o “comentário cáustico sobre as relações sadomasoquistas”que é “Fixas-te em mim”, como lhe chamou a investigadora, e todo o Políticas de Poder transforma-se num comentário mais amplo e numa denúncia mais universal. Os comportamentos misóginos e machistas da figura ou figuras masculinas do livro, que por sua vez geram uma reacção violenta por parte da mulher, constatados e denunciados por Atwood, são apenas uma faceta, hoje em dia felizmente mais visível, de uma sociedade onde imperam as relações abusivas e a desigualdade de forças e poder.
“fixas-te em mim
como num olho um anzolum anzol de pescar
um olho aberto”
Atwood sabe que a consideram uma pessimista. Numa entrevista concedida nos anos 80, garantiu que não é esse o caso, mas, curiosamente, não manifestou que fosse otimista. Olhando para os seus livros, seria difícil chegar a essa conclusão. Talvez a melhor forma de a definir seja ambígua. Dupla, como a Perséfone da sua primeira coleção de poesia.
E, de facto, Atwood parece ter alguma predilecção pela ambiguidade — os seus finais costumam ser assim. “Ele é visto pela última vez”, o último poema de Políticas de Poder, começa dizendo: “Chegas até mim / trazendo uma nova morte”, mas as últimas palavras são “terra firme” e “segurança”.
Em Os Testamentos, a autora mostrou que, no meio da maldade e do terror, é sempre possível encontrar bondade. Talvez as “noites do mar \ profundas e sem estrelas”, com que escolheu encerrar Políticas de Poder, também possam, um dia, gerar luz própria e fazer desmoronar os pequenos e grandes autoritarismos que sustentam este mundo desigual que Atwood, livro após livro, continua a denunciar.