Há onze anos que as autoridades nacionais recebem queixas de associações ucranianas em Portugal sobre infiltrados pró-Putin na sua comunidade. Há dois meses rebentou uma guerra entre os dois países, com a Rússia a invadir a Ucrânia, mas pelo meio já tinha existido o episódio da anexação da Crimeia (2014) e o apoio constante russo aos separatistas de Donetsk e Lugansk. As queixas foram sempre sendo repetidas, em 2017 e 2018, e o Governo interveio quando o caso chegou à comunicação social, no fim de março passado, já com a relação entre a Rússia e a Ucrânia definitivamente entornada e a consequente crise de refugiados ucranianos. E a ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares — ouvida na terça-feira na comissão parlamentar sobre a receção de refugiados ucranianos, na Câmara de Setúbal, por funcionários russos alegadamente simpatizantes do regime de Putin — não garante que não possa haver mais situações no país.

A 24 de março a rádio Renascença noticiou que havia associações pró-Rússia a acolherem refugiados ucranianos por sugestão do Alto Comissariado das Migrações (ACM). No dia seguinte, a 25 de março o Governo ligou à embaixadora da Ucrânia em Portugal e ficou decidido que ia ser dada ordem ao ACM para retirar do seu site a lista de associações de apoio a refugiados que chegasse a Portugal e que fosse colocado antes um link a reencaminhar quem procurasse apoio para a Embaixada da Ucrânia.

“A 25 de março, na sequência de uma conversa entre a embaixadora da Ucrânia e a tutela, foram dadas instruções para que os procedimentos fossem mudados e que as listas [de apoio a refugiados] que o ACM tinha no SOS Ucrânia pudessem não existir e houvesse um link para a Embaixada da Ucrânia” explicou Ana Catarina Mendes.

Na intervenção inicial, a ministra ilibou de culpa a tutela dizendo que “nem esta nem a anterior se desresponsabilizou em momento algum na forma como acolheu estes cidadãos em Portugal”. E elogiou o “trabalho extraordinário” do ACM que não tem — repetiu Ana Catarina Mendes e já tinha dito, antes dela, a alta comissária para as migrações na mesma sala — qualquer protocolo com a Câmara de Setúbal, onde o Expresso noticiou terem existido casos como os relatados inicialmente pela embaixadora ucraniana à Renascença.

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Na semana passada, na conferência de imprensa do Conselho de Ministros, a anterior ministra com a pasta das migrações, Mariana Vieira da Silva, já tinha dito que “houve notícias públicas, desde logo na rádio Renascença, e houve trabalho em função dessas notícias e até resposta na altura face a essas notícias. Houve naturalmente resposta do Governo”, reforçou a ministra. Nesse dia, Vieira da Silva disse que não tinha recebido denúncias, mas “havendo notícias públicas houve naturalmente resposta do Governo”.

Mas houve várias queixas. Em 2011, contou o presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal ouvido logo ao início da tarde, começou a dirigir queixas ao Alto Comissariado. A primeira foi porque, na altura,  a representação de imigrantes ucranianos no país “tinha a designação ‘de Leste’”, o que incomodava os ucranianos. Resolvida essa questão, seguiu outra queixa para o Alto Comissariado sobre a existência de duas agências de propaganda russa a representar a comunidade ucraniana em Portugal. “Os líderes das organizações fazem parte do conselho dos compatriotas russos junto da embaixada russa”, disse Pavlo Sadokha no Parlamento.

O presidente da associação disse ainda que ao longo dos anos seguiram-se outras denúncias junto do ACM sobre a existência de grupos pró-russos misturados na representação ucraniana em Portugal e que em 2017 a sua associação até desistiu de participar nas eleições para um representante do grupo de imigrantes ucranianos em Portugal já que nesse grupo “existiam duas organizações ucranianas e seis pró-Rússia”. “Se participássemos nas eleições legitimávamos a situação”, justificou Sadokha na sua exposição inicial aos deputados. Disse também que em 2018 houve um evento onde existiam bandeiras das regiões de Donetsk e Lugansk, que autoproclamaram a independência da Ucrânia em 2014 (e onde a Rússia apoia grupos separatistas — aliás, o reconhecimento russo destas regiões esteve no início do atual conflito).

Situações reportadas ao Alto Comissariado que, nesta mesma tarde no Parlamento, confirmou que desde 2011 tinha conhecimento do desconforto de algumas associações ucranianas face a infiltrados pró-Putin. Mas Sónia Pereira, a Alta Comissária, explicou que a entidade que dirige não tinha mandato para fazer essa verificação. “O ACM apenas reconhece a representatividade como associação de imigrantes” nada mais. “Se tem ligações à Rússia, familiares russos ou ligações pró-Putin não está no mandato do ACM verificar. Não temos forma de averiguar essas situações”, explicou aos deputados.

Já Ana Catarina Mendes surgiu no Parlamento com a mensagem alinhada (até leu a primeira intervenção). Condenou a situação “inaceitável”, jurou “investigar” e garantiu que o Governo agiu ainda em março, dias antes de o novo Executivo tomar posse. Só não respondeu diretamente às perguntas deixadas pelos vários partidos, da esquerda à direita, sobre o conhecimento do Governo sobre situações semelhantes à registada em Setúbal. E quando o Chega e a Iniciativa Liberal se queixaram, depois da primeira ronda de respostas, de terem ficado com questões em branco, a ministra lá saiu do guião: “Respondi quando percebi as perguntas. Perguntou se há ou não certeza de isolamento do caso de Setúbal e, neste momento, está cingido ao caso de Setúbal. Não posso dizer que amanhã não surja outro caso, mas ao dia de hoje, de acordo com os dados do ACM, a informação que temos é que é um caso isolado”.

A ministra citou ainda Pavlo Sadokha quando este disse, na audição antes dela, não suspeitar de fornecimento de dados aos serviços secretos russos. Ainda que tenha assumido antes que as ligações a agências de propagandas russas são “perigosas porque tendo contacto direto com a embaixada russa é muito fácil fornecer informações”. Ana Catarina Mendes reteve a parte da mensagem mais otimista: “Não há certeza que os dados [recolhidos em Setúbal] tenham sido enviados para qualquer organismo externo”.

Câmara de Setúbal recusou (ainda esta semana) protocolo com ACM

Já no final da audição e depois de uma inesperada rajada de perguntas sobre o caso de Setúbal vindas da deputada do PCP — até aqui Alma Rivera só tinha feito perguntas muito genéricas sobre a receção de refugiados em Portugal e até chegou a não querer fazer perguntas quando foi ouvida uma das associações — a ministra apontou culpas concretas. A Câmara de Setúbal não tem protocolo com o ACM porque não quer.

Alma Rivera tinha questionado a ministra sobre se há mais câmaras sem este tipo de acordos, e Ana Catarina Mendes respondeu afirmativamente. Mas para logo a seguir atirar que, mesmo assim, têm trabalhado em estreita cooperação. Não é o caso de Setúbal”, afirmou sobre a câmara comunista. E contou o episódio recente: “Houve na última semana uma tentativa de reunião com Câmara de Setúbal para um protocolo para acolhimento de deslocados da Ucrânia, o centro local de apoio à integração de migrantes tentou que houvesse, através de uma sessão de esclarecimento, mas a Câmara não quis estar nem celebrar o protocolo”.

A ministra direcionou o único ataque já mesmo nos minutos finais da audição e quando em Setúbal estava reunida a Assembleia Municipal tendo em cima da mesa duas moções de censura ao executivo municipal, uma delas apresentada pelo PS. Nenhum passou. Entretanto, esta quarta-feira, as audições parlamentares relativas ao caso continuam. Logo de manhã é ouvido o secretário-geral do Sistema de Segurança Interna, Paulo Vizeu Pinheiro, e logo de seguida o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro.