Gosto de pensar que vivo numa relação aberta com a realidade: ela pode sujeitar-se à vontade dos outros, e eu posso aventurar-me em realidades alternativas. Talvez por isso, quis encarar este isolamento por Covid-19 como uma bênção. Imaginei uns dias de férias do mundo, tempo para me dar tempo, lembrando que toda a grande viagem é forçosamente interior e que a verdadeira aventura é um exílio íntimo. Essas tretas.

Sofá, televisão e delivery: eis a sinopse desta minha jornada espiritual. No momento em que escrevo, levo quatro dias disto. Parece uma eternidade e talvez tenha sido. Deu tempo para a Suécia superar uma neutralidade de 200 anos, o Casa Pia regressar à primeira divisão ao fim de 83, o Zelensky inaugurar um festival de cinema e a Ucrânia invadir a Eurovisão com um abajur na cabeça. Nos Estados Unidos, um gaiato infetado pelo vírus supremacista matou dez pessoas a tiro, em direto numa plataforma de videojogos. Por cá, temos a varíola dos macacos. O mundo é um lugar estranho e olhá-lo dias inteiros por um janela de 42 polegadas deixou-me extenuado. Mas isto também pode ser do bicho.

Vamos então à experiência, que foi positiva, pelo menos de acordo com o laboratório. De entrada, uma zaragatoa. Boa haste, firme mas maleável, extremidades absorventes, demoradamente aplicada em ambas as ventas até fazer cócegas na mioleira. Para principais, escolhi quatro pratos de conforto em restaurantes com serviço de entrega própria. Não quis com isto dar ideia de que tenho alguma coisa contra as plataformas de delivery (tenho, mas não é a ideia que quero dar agora); simplesmente não me apetecia fazer contas separadas aos méritos do cozinheiro e do motorboy. Virei frangos e gringas, sorvi sopa quente e massa fresca. E acompanhei tudo com vinho da casa, que disso estava bem servido.

Sábado

Chikinho

3 (***)

Em todas estas encomendas me pedem que meta dados. Suponho que seja tudo legal, embora vá para aí um grande escarcéu sobre o assunto. No caso do Chikinho, casa especializada em frangos no churrasco, já lá conservam o meu nome, morada, email e número de telefone há mais de um ano. A casa tem um serviço de entrega próprio, baseado no seu próprio site, e não cobra pelo serviço — apenas estipula um valor mínimo de encomenda.

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© Chikinho

Agendo a frangalhada para as 19h30 e ela chega em cima da hora. No topo do saco, umas gyosas de frango (5€ meia dúzia), que pedi mais por gula e para garantir que atingia o mínimo para entrega (14,90€). Boazinhas. Em baixo, um frango inteiro (11€) que há-de sobrar para omelete, e que reencontro como me recordava dele. Bichos de boa índole, nada de carne farinácea, e evidências de uma grelha competente: frangos assados até ao osso mas com os sucos bem selados, dourados e de pele crocante, sem sinais de toque pelo fogo. Pelas minhas contas, o Chikinho já leva pelo menos uns quatro anos a virá-los, e a coisa está bem oleada. Acrescentei umas chips de batata doce que, sendo boas, não merecem 2,60€ por 50g.

Domingo

Las Gringas

(3***)

Domingo estreio-me no Las Gringas, novo serviço de petiscaria mexicana criado pela malta do Pistola Y Corazón, saudosa capelinha de tacos e tequila que a Covid levou. Além dos tacos, que agora entregam em kits prontos a montar, a ementa aposta nas gringas que dão nome ao projeto, uma espécie de quesadillas assim fofinhas, forradas a queijo, coisa gulosa. E a ideia de me refastelar no sofá com duas gringas parece-me tentadora.

Prometem demorar 25 minutos, conseguem entregar em 31. Não está mau. Além do mais, aprecio a honestidade da aplicação usada (Kitch, de sua graça, comum também aos dois pedidos que se seguem), que me vai indicando a localização do meu pedido e quanto tempo realmente passou desde que o fiz. Devia ser a regra. Quando chamo um daqueles táxis com nome de canal de televisão, irrita-me que vão acertando o tempo de espera às circunstâncias: dizem que o TVDE chega daqui a x tempo, mas daí a nada já pode ser y. Tão rigoroso e inútil quanto dizer que faltam 15 minutos para daqui a um quarto de hora.

© Las Gringas

As gringas chegam quentinhas, impecavelmente engomadas em duas folhas de prata. São a versão mais pequena, as gringuitas, duas meias-luas com 16 cm de base. O mesmo é dizer que, encavalitando uma na outra, obtemos uma circunferência com 8 cm de raio. Ora, sabendo que A = π x r², temos, contas redondas, uns 200 cm2 de gringa para abocanhar. Por quase vinte mérreis, não é muito.

Mas o produto é realmente bom e desconfio que não haverá mexicano mais genuíno na cidade. As tortilhas supimpas, fofas e elásticas qb, massa cozida no ponto, tudo certo. Os recheios com bom produto e tempero certeiro. Experimentei a camarón a la diabla (7,48€), ótima combinação de gamba, feijão abacate e maionese picante (belo chimichurri de león); e a de chorizo verde (8,16 €), recheado de belo porco picadinho com bastante cebola. Hei-de repetir, mas com pelo menos três gringas, nível Zezé Camarinha.

Segunda-feira

Ajitama

(4****)

Como há muito não vou ao Ajitama, decido convidá-lo a vir cá a casa. Da última vez, garantia-me quem sabe mais da arte do que eu, era ainda o melhor ramen da cidade, mesmo depois de ter deixado de ser super club exclusivo para ser restaurante da moda. Da minha parte, ainda não provei melhor. Lembro-me por isso de ir ver como se portam eles com entregas, sabendo que o ramen é para ser sorvido a ferver. E descubro que têm isso bem resolvido: a sopa chega em peças, o caldo à parte, e com a recomendação de o aquecer bem antes de misturar. Por outras palavras, põem-me a trabalhar. O resultado não é igual ao acabadinho de fazer, mas fica razoavelmente perto.

Dos nove ramens disponíveis, mando vir os dois extremos de intensidade. Surpreendente o ramen veggie (14,50€), o caldo muito aromático, feito à base de abóbora de Hokkaido. É 100% vegetal, mas mesmo assim cheio de sabor e bom teor de gordura. É feito a pensar em vegans, mas eu mandei plantar um ovo para dar graça à coisa. Lá dentro, um belíssimo espargo rijinho, cogumelos, uns pedaços de courgete a sério, com sabor, e uns bons tomates (são dois, podemos dizer um par) longamente assados antes de mergulharem no conjunto.

© Ajitama

Melhor ainda o spicy tonkotsu (15,50€), com o caldo à base de ossos de porco, cozinhados durante muito tempo em lume brando. O caldo é opaco, já a dar para o cremoso, aromático, infundido com óleo picante (la yu), e lá dentro dois pedaços barriga de porco assada (chasu) também com tempo, capaz de se desfazer à colher, mais um magnífico ovo em metades, também assado, a gema espessa, laranja, suculenta. Os noodles não são caseiros — nem ninguém prometeu que fossem — mas muito gulosos, do melhor industrial que já provei. Juntem-se uns farrapos de cogumelos pretos kikurage e temos uma comida de conforto perfeita para um lamechas que se sente às portas da morte com menos de 37,5º de temperatura. O caldo estava mais quente que isso.

O pedido foi agendado para as 18.30/19.00 e não falhou essa janela. As encomendas incluem delivery fee (€2.40), bag fee (€0.10), mais e-vai-um fee (todos os pratos já estão inflacionados 1€ face ao restaurante)

Terça-feira

Nonna Goes Crazy

(2**)

A Nonna Goes Crazy é um pequeno restaurante encastrado entre a Avenida da Liberdade e o Príncipe Real, ali à Rua de Santo António da Glória. O lugar abriu há umas poucas semanas, mas o serviço de delivery nasceu no Instagram há já algum tempo. A proposta é massa fresca caseira a preceito, inspirada na figura mitológica de uma avó italiana que a fazia como ninguém (a Nonna desta história). Ora, eu gosto de avós que cozinham bem (embora a minha não fosse um génio), gosto de histórias com segredos de cozinha que passam de geração em geração (mesmo que seja só storytelling fofinho), e sobretudo gosto muito de massa. E é por isso que me custa assinalar o penálti.

© Nonna Goes Crazy

Para esta estreia, apostei na carbonara da casa. A base é rigatoni e o molho anuncia um promissor twist com creme de abóbora e stracciatella de burrata a fazer as vezes do ovo. Depois, aos pedaços de pancetta crocante, soma-se umas nozes torradas. Para quem procura uma gordice de conforto, tem tudo para funcionar. A encomenda foi feita para as 20.30, eram 20.25 e já cá estava. Chegou cedo, mas já veio atrasada. Molenga, quase fria, e sem o topping pedido (1,5 € de parmesão ao ar). A massa é realmente bem feita, de boa consistência, mas o conjunto é adocicado para lá da conta e chega um tanto ressequido. A caixinha, lamento, não vale os 15€. Para mais, isto precisa de vinho. Tento salvar a coisa com um branco com alguma acidez que contrarie esta lambarice adocicada. No fim, confesso, não sobra nada. Mas reparem que o sujeito desta equação é um tipo de pijama, prostrado num sofá e carente de mimos.

De sobremesa, um tiramisu da Nonna que, não sendo a nona de Beethoven, é o melhor da refeição. Vem encastrado num frasquinho de vidro, cremoso mas firme, as camadas de biscoito bem embebidas de café, o doce no ponto. Bem feito, sem ser obra-prima

Ao fim destes quatro dias, convenço-me de que o delivery foi uma das boas heranças do confinamento. A oferta melhorou muito, na rapidez e no cuidado do serviço — em toda esta história, a entrega mais lenta foi a do teste: a zaragatoa entrou às 12.00, resultado saiu às duas da manhã. Mas melhorou sobretudo na variedade e hoje, por muito que se mande vir, já ninguém tem de enfiar o mesmo barrete duas vezes.

Como diz o outro, hei-de voltar. Até porque moro aqui.

O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.