Várias personalidades portuguesas, incluindo o ex-presidente da República Ramalho Eanes, o humorista Bruno Nogueira, a cientista Maria Manuel Mota e a pianista Maria João Pires, juntaram-se esta semana à comissão independente que está a investigar os abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal ao longo das décadas num apelo às vítimas para que denunciem os crimes que sofreram.
Num comunicado enviado aos meios de comunicação social, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, coordenador da comissão independente, explica que o organismo “tem procurado que um grande número de vítimas adultas consiga agora, em muitos casos pela primeira vez e de forma anónima, expressar as situações deste tipo pelas quais passaram enquanto crianças“.
“Muitas já responderam através do preenchimento do inquérito on-line (no site darvozaosilencio.org), por telefonemas para o telemóvel 91 711 00 00, por carta ou entrevistas presenciais”, diz Pedro Strecht. “Contudo, sentimos que, em número provavelmente muito maior do que o desses, continua a existir uma barreira intransponível de ‘medo, vergonha e culpa’ que impede outros de também darem o seu testemunho.”
Segundo Strecht, por esse motivo, a comissão “desafiou um grupo de diversas personalidades das mais diversas áreas profissionais, sociais e contextos individuais, para que pudessem colaborar através da escrita de um pequeno texto ou até de uma simples frase sobre o ‘que diria a alguém adulto que, em criança possa ter sido abusado sexualmente, para finalmente dar voz ao seu silêncio?‘”
Entre os apelos recebidos pela comissão, que pode ler aqui na íntegra, conta-se o texto assinado a duas mãos pelo antigo Presidente da República António Ramalho Eanes e por Manuela Eanes, fundadora do Instituto de Apoio à Criança. No texto, o casal Eanes sublinha que o abuso sexual é “o crime mais repugnante e mais monstruoso que pode acontecer a uma criança”.
“Se apenas mais tarde, talvez na idade adulta, a pessoa se apercebe do mal que lhe foi feito, deve sempre reportar esse crime, denunciá-lo, não só para que o criminoso não repita o mesmo crime com mais crianças, mas, também, porque os criminosos – sobretudo os monstros que abusam de crianças – devem ser punidos, com mão forte, exemplar. E também tratados na área da Psiquiatria”, dizem. “Não podemos aceitar tanta indiferença e sofrimento, pelo que temos de fazer tudo para termos não só crianças como adultos mais felizes e com horizontes de mais dignidade.”
O conjunto de textos conta ainda com um breve apelo do humorista Bruno Nogueira: “Que a dor inimaginável de voltar a um sítio tão escuro seja iluminada pela ideia de um futuro de crianças salvas pela vossa dura mas preciosa partilha.”
A pianista Maria João Pires escreve: “A coragem vai-te servir para respirar, deixar entrar o ar a plenos pulmões, projectar o teu grito, para depois poderes cantar.” E a escritora Filipa Melo diz: “Sente no seu colo a criança que um dia foi. Abrace-a. Assegure-lhe que a culpa não foi dela, nunca, em nenhuma circunstância. Embale-a. Agora, ela pode dizer. Ajude-a a enfrentar os monstros que guarda há tanto tempo dentro de si mesma. Está na hora de gritar contra eles, e ela já não está sozinha. Faça-a dizer e libertar-se. Somos muitos os que tudo faremos para a proteger. Estamos todos aqui, ao seu lado, ao lado dela.”
Já o ex-ministro (e candidato derrotado à liderança do PSD) Jorge Moreira da Silva afirma que a denúncia dos crimes “contribui para uma maior proteção das presentes e das futuras vítimas” e “sensibiliza a sociedade para uma cultura de tolerância zero em relação aos abusos sexuais e para as responsabilidades indeclináveis das organizações“.
Testemunho na primeira pessoa: “O padre que me violou era o mesmo que pregava um Cristo de amor”
A comissão independente foi criada pela própria Conferência Episcopal Portuguesa. Os bispos escolheram Pedro Strecht, pedopsiquiatra conhecido pelo seu trabalho no caso Casa Pia, para liderar esta comissão — e deram-lhe liberdade para escolher os membros da comissão. O organismo é composto também pelo psiquiatra Daniel Sampaio, pela socióloga Ana Nunes de Almeida, pelo ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, pela assistente social Filipa Tavares e pela cineasta Catarina Vasconcelos. A comissão está em funcionamento desde janeiro e, até agora, já recebeu 368 testemunhos, tendo encaminhado 17 casos para o Ministério Público. O relatório final da comissão deverá ser conhecido em dezembro.