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Ana Moreira/Observador

Ana Moreira/Observador

“Saí de lá revoltada.” A carta de uma vítima de abusos que diz ter sido ignorada pelo bispo e que pede para agora ninguém se calar

Este é o testemunho de uma mulher de 44 anos que diz ter sido brutalmente violada por um padre, ainda no ativo, aos 16. Duas décadas depois, contou ao bispo e à comissão diocesana. Foi ignorada.

Durante vários anos, L. guardou o que viveu em segredo e nunca conseguiu falar do que lhe acontecera. Tinha apenas 16 anos e participava numa formação para jovens religiosas quando um padre a violou brutalmente, segundo conta. Hoje, aos 44 anos — e depois de ter denunciado o caso ao ainda bispo da diocese (por se tratar de um padre que também se mantém no ativo), a uma comissão diocesana e recentemente à comissão independente –, L. decidiu publicar no Observador o seu testemunho, como forma de apelo à denúncia. E fala a todas as vítimas que ainda hoje sofrem em silêncio os traumas que situações idênticas lhes deixaram.

A história de L. chegou ao Observador na mesma semana em que o Patriarcado de Lisboa anunciou o afastamento de um padre da diocese, também por suspeitas de violação de uma mulher, embora maior de idade. Mas a história de L. é outra. É a de uma mulher que foi violada ainda jovem, com apenas 16 anos, numa fase de vocação para uma vida religiosa, e que só anos mais tarde conseguiu finalmente falar do que lhe aconteceu por um único motivo: medo. Fê-lo, primeiro, a alguém de confiança, que lhe sugeriu que denunciasse o caso para ajudar a evitar outras vítimas.

Depois, há cerca de dois anos — numa altura em que o Papa Francisco já havia chamado os bispos de todo o mundo para uma cimeira inédita destinada a debater a crise dos abusos na Igreja, da qual viriam a sair mais tarde as normas atualmente em vigor, que obrigam à comunicação de todos os casos às autoridades civis —, L. encontrou-se mesmo com o bispo da diocese onde ainda hoje trabalha o padre que abusara dela. Mas da parte do bispo, que continua igualmente no cargo, sentiu apenas a desvalorização do caso e a recusa de ajuda.

Já em janeiro deste ano 2022, L. dirigiu-se à comissão diocesana de proteção de menores da sua diocese para um diálogo que, segundo ela, correu “ainda pior” que o que tivera com o bispo. Só recentemente L. contou a sua história à comissão independente que está a investigar os abusos contra menores cometidos na Igreja Católica em Portugal ao longo das últimas décadas.

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Patriarca de Lisboa recebeu denúncia de abusos e reuniu-se com vítima. Mas manteve padre em funções e não comunicou caso à polícia

O testemunho escrito pelas mãos de L. é, sobretudo, um apelo para que outras vítimas percam o medo de falar e saiam do silêncio em que se mantiveram durante anos. Um apelo para que denunciem o que viveram junto da comissão independente criada pela Igreja e liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht. Através do seu testemunho, L. tenta explicar como a violação de que terá sido vítima transformou radicalmente a sua vida, marcou a sua sexualidade e deixou profundas marcas do foro psicológico que ainda hoje não conseguiu sarar. Um sofrimento agravado pelo facto de a diocese a que se queixou, segundo ela, ter sabido do caso, preferindo ocultá-lo e nada fazer quanto ao padre.

L. pede para que nem ela nem o sacerdote em causa — que continua ao serviço da Igreja — sejam identificados publicamente. Vinte e oito anos depois, L. continua a viver aterrorizada e a temer represálias por quebrar o silêncio. O Observador sabe que o nome deste padre consta entre os oito que Pedro Strecht entregou à Polícia Judiciária por serem padres ainda no ativo cujos crimes denunciados estarão prescritos, mas que poderão ter sido ou vir a ser alvo de novas queixas. Junto da comissão independente, o Observador apurou que este é um dos quase 400 casos validados por aquele organismo e que a vítima foi recebida presencialmente pelos seus elementos. O organismo recusou, porém, acrescentar mais detalhes e esclarecer se este é um dos dos 17 casos remetidos ao Ministério Público para a instauração de um processo crime.

Das 17 participações, segundo a Procuradoria Geral da República, dez deram origem a inquéritos. Um destes processos concentra seis das denúncias e outros dois, duas cada um. Neste momento há, assim, sete processos crime contra membros da Igreja em investigação. Houve ainda três processos abertos (na sequência de quatro denúncias) que já foram arquivados: um por prescrição, outro cujos factos já tinham dado origem a um julgamento que terminou em condenação e um terceiro por falta de meios de prova.

Testemunho na primeira pessoa: “O padre que me violou era o mesmo que pregava um Cristo de amor”

A denúncia de L. é uma das várias situações de abuso sexual na Igreja Católica de que o Observador tem conhecimento e que está a investigar meticulosamente, num trabalho de escrutínio público das ações da Igreja Católica em relação à crise dos abusos de menores cometidos pelo clero. O Observador confirmou de modo independente vários pontos desta denúncia, incluindo identidades e o facto de o caso ter sido exposto à comissão diocesana de proteção de menores da diocese em questão, que pertence à região centro do país.

"Aquele acontecimento marcou profundamente a minha vida e mudou-me, pois deixei de confiar nas pessoas, mesmo até naquelas que me estavam e estão próximas; qualquer assunto relacionado com a sexualidade tornou-se para mim um tabu até hoje, impediu-me de viver a minha vida livremente."

“Nunca contei a ninguém o que se passou”. Leia aqui o testemunho desta vítima:

“Quando era ainda menor de idade, fui abusada por um sacerdote (não importa aqui onde, quando, quem, em que situação). A verdade é que nunca contei a ninguém o que se passou, pois tinha muito medo do que pudesse vir a acontecer. Aquele acontecimento marcou profundamente a minha vida e mudou-me, pois deixei de confiar nas pessoas, mesmo até naquelas que me estavam e estão próximas; qualquer assunto relacionado com a sexualidade tornou-se para mim um tabu até hoje, impediu-me de viver a minha vida livremente, pois tinha que ter cuidado para que o meu segredo não fosse descoberto.

Há muito poucos anos, ao conversar com uma pessoa que estimo muito, ganhei coragem e revelei-lhe o que tinha acontecido. Ela perguntou-me se eu não ia tomar nenhuma atitude em relação ao sucedido, pois poderia haver mais vítimas, uma vez que o sacerdote continua no ativo.

Ao refletir sobre o assunto, decidi então, na possibilidade de haver e prevenir mais vítimas, ir falar com o bispo da diocese do sacerdote. O diálogo não correu como eu imaginei e saí de lá revoltada. De tal maneira mexeu comigo aquele diálogo que fiquei literalmente doente e toda a minha vida mudou: pessoal e profissional. Fiquei sem saúde, sem trabalho e basicamente sem família.

Quando foi criada a comissão diocesana de proteção de menores e adultos vulneráveis da diocese em questão, apresentei a minha denúncia por escrito. Demoraram muitos meses a contactar-me e, quando finalmente me convocaram para um encontro, as coisas ainda correram pior. Não quer dizer que todas as comissões diocesanas sejam assim, porque, inclusive, conheço uma pessoa que faz parte duma comissão noutra diocese e ela é excecional…

Adiante… Cansada e desmoralizada decidi contactar (depois de ser criada) a Comissão Independente. O dr. Pedro Strecht, desde o primeiro minuto que entrei em contacto com eles, acolheu-me de uma forma impressionante em todas as comunicações que fizemos. Pediu-me para me encontrar com ele e com o dr. Daniel Sampaio. Acedi ao pedido e digo-vos: foi algo que eu nunca esquecerei! Foram ambos extremamente acolhedores, amáveis, compreensivos. E não só se limitaram a escutar-me, como me têm ajudado até hoje.

Apenas escrevo este testemunho para que tu, que o lês, saibas que tens ali um grupo de pessoas que te acolhe na tua dor e não te abandona. Que dão do seu tempo para te escutar uma e outra vez! Que vão lutar contigo e por ti até onde conseguirem.

O encontro com eles foi um novo marco na minha vida. Deu-me finalmente alguma esperança, não daquela de que vai ser feita justiça, não é disso que falo! É uma esperança que dá um novo alento à minha alma e me ajuda a caminhar cada dia, na confiança de que não estou sozinha!

Agradeço à Comissão [Conferência] Episcopal Portuguesa por ter criado esta Comissão e por a ter confiado ao dr. Pedro Strecht.

E tu, dá voz ao teu silêncio junto deles! Não tenhas medo. Eles serão impecáveis contigo e tu deixarás de te sentir sozinho, pois terás partilhado o segredo que te sufoca com pessoas que te escutam e acolhem de braços abertos e que mantêm o teu anonimato, se for esse o teu desejo”.

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