A Iniciativa Liberal pediu a demissão da ministra da Coesão no seguimento da notícia do Observador que dá conta que o marido de Ana Abrunhosa recebeu apoios de fundos comunitários da União Europeia e uma deputada do PS pediu que a intervenção do deputado liberal fosse apagada e retirada da ata por o assunto não estar na ordem de trabalhos. Entretanto, o vice-presidente da bancada do PS, Pedro Delgado Alves, já pediu desculpa em nome da deputada socialista e admite mudar a lei.

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O caso da ministra Ana Abrunhosa

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O insólito momento do pedido para apagar a gravação aconteceu na Comissão de Administração Pública, Ordenamento do Território e Poder Local, onde a ministra da Coesão estava a ser ouvida, na manhã desta quarta-feira, o dia após a divulgação da notícia. No Twitter, Carlos Guimarães Pinto denunciou o sucedido: “Agora mesmo na audição à ministra da Coesão Territorial uma deputada do PS pediu para que a gravação da minha intervenção sobre os fundos atribuídos ao marido da ministra fosse apagada. Incrível. Inacreditável em democracia.”

O deputado liberal deixou os assuntos relativos à comissão para mais tarde e chegou-se à frente sobre o tema em causa: “Falou-se aqui muito em seriedade e ética e acho que é impossível não começar sem mencionar o elefante na sala hoje.”

Guimarães Pinto admitiu até que a situação em causa possa ser “perfeitamente legal”, como a ministra justificou ao Observador, mas acusou a governante de um “conflito ético evidente“. “O seu marido, legalmente até pode ser, mas eticamente não pode ser beneficiário de fundos europeus.”

E, perante os factos, Carlos Guimarães Pinto referiu que a ministra tinha apenas “duas alternativas”: ou as empresas do marido “devolvem os fundos” que receberam ou Ana Abrunhosa deve pedir a demissão do cargo. “A terceira opção é passar o resto do seu mandato com uma nódoa ética do seu Governo”, defendeu, sublinhando ainda que “neste Governo já não se vê pano, só nódoas”.

A defesa não veio de parte da ministra e foi uma deputada do PS, Isabel Guerreiro, que não só interrompeu a intervenção de Guimarães Pinto a questionar sobre a ordem de trabalhos, como mais tarde justificou que “não pode vir alegar factos que não têm a ver com o que não está na ordem de trabalhos”.

“Não posso falar sobre o café ou o chá que podemos ter tomado ontem à tarde. Estou impedida. O senhor deputado não pode fazer a intervenção que faz, fora do contexto e continuar a falar como se nada fosse, porque não está na ordem de trabalhos. Não posso falar sobre o concerto que fui ver neste verão porque não está na ordem de trabalhos. E por esse facto acho que deve ser retirada a gravação e deve ser retirada esta parte da ata, não deve ficar a constar [na ata]”, defendeu a deputada.

No seguimento da intervenção da deputada do PS, a ministra da Coesão referiu apenas “já ter respondido a todas as questões” e deu continuidade à audição. Porém, no regresso ao tema — quando já tinham saído as primeiras notícias sobre o sucedido —, Ana Abrunhosa, visivelmente emocionada (“sou uma chorona”), pediu que não se apagasse qualquer gravação em prol da democracia.

“Se depender da minha opinião, nada do que disse será apagado, não há necessidade disso. O senhor deputado exerceu a sua opinião, como eu tenho a minha, (…) acho que a bem do entendimento de todos peço que nada seja apagado, que tudo fique, porque ninguém ganha com isso. Estamos em democracia e é em democracia que debatemos as nossas ideias e no fim do dia é com a nossa almofada que fazemos contas”, disse a ministra, garantindo que “respeita” as palavras do deputado e admitindo que é possível “entender quando as críticas são feitas com amizade ou com malícia”.

Carlos Guimarães Pinto acabou por voltar a intervir e por deixar um elogio à “dignidade” da resposta da governante, sublinhando que os fundos deviam ser devolvidos para que a ministra não tivesse de se demitir.

Empresas de marido da ministra da Coesão receberam fundos comunitários. PGR diz que é legal, mas critica “obscuridade” da lei

Ainda antes de Carlos Guimarães Pinto, o deputado do Chega Bruno Nunes também não tinha deixado passar o tema em branco e mostrou-se convicto de que a ministra iria acabar por se demitir. “Esta manhã, recebi um SMS a dizer urgente, com documentação para esta comissão e confesso que pensei que era a sua demissão, que esta audição tivesse caído pela sua demissão, e acredito que estamos aqui a discutir uma coisa e que, no final do dia, para a semana teremos de estar a chamar o novo ministro da Coesão porque acredito que antes do almoço ou depois do almoço será demitida ou irá demitir-se”, sublinhou.

PS pede desculpa por deputada e admite mudar a lei

O Partido Socialista admite mudar a lei, apesar de esta ter sido “revista muito recentemente, em 2019,” e de já garantir que “nenhum titular de cargo político pode intervir a projetos que digam respeito aos seus cônjuges ou familiares próximos”.

Pedro Delgado Alves explicou que a “matéria de fundos europeus é coberta por grande parte destas disposições” da atual lei e realça que a atual situação com a ministra “não é tanto” pelo cargo atual, “mas por funções em que ao longo da sua vida se cruzou com matérias que diziam respeito a fundos comunitários”.

O deputado do PS admitiu que “a lei pode ser aprimorada e melhorada”, sublinhando que há “recetividade” do partido para “propostas que aprofundem e assegurem transparentemente e com clareza que a legislação é boa”.

Mariana Mortágua, pouco antes, tinha referido que “a procuradoria diz que é legal, mas que a lei tem de ser mudada”, abrindo a porta a duas situações: “Há um problema ético que o Governo e a ministra têm de responder, e cabe ao Parlamento alterar esta lei cumprindo a indicação da procuradoria relativamente a um potencial conflito de interesses entre a ministra que tem responsabilidade pelos fundos comunitários e relações familiares próximas que possam aceder a esses fundos.”

A deputada do Bloco de Esquerda apelidou a situação como “grave”, mas realçou estar crente que de “o PS não acompanha estas declarações e terá oportunidade para se retratar”.

Foi exatamente o que veio confirmar Rodrigo Saraiva, líder da bancada da IL, referindo que o deputado socialista, em nome do PS, “pediu desculpa pelo acontecimento ao deputado Carlos Guimarães Pinto, à IL, à comissão e à Assembleia da República”.

“Consideramos que assunto está sanado, esclarecido e registamos positivamente esse reconhecimento do PS de uma má prática e de uma má atitude de uma deputada”, notou o deputado liberal, reiterando que a atitude de Isabel Guerreiro é “inaceitável” e que Augusto Santos Silva vai confirmar que não há o intuito de haver qualquer “apagamento da ata”.

Pedro Delgado Alves foi claro e rápido a lamentar o comportamento da deputada: “O PS pede desculpa à instituição parlamentar, à Iniciativa Liberal em particular e aos demais partidos que estiveram presentes na comissão [de Poder Local] pela forma infeliz como a senhora deputada do PS [Isabel Guerreiro] tinha solicitado a remoção de elementos da ata e da gravação da reunião que tinha decorrido”.

Porém, Rodrigo Saraiva não deixou de sublinhar que a IL se preocupa com o facto de este poder ser um sinal da governação socialista: “Quando uma deputada do PS tem o à-vontade para ter esta atitude é um sintoma daquilo que é a prática de como o PS governa e gere a coisa pública. O episódio deve servir ao PS para uma reflexão do que é a sua prática, que permite a deputados seus que se achem donos disto tudo.”

PSD acusa PS de ter mostrado o “peso do rolo compressor”

Já o PSD, pela voz de Luís Gomes, reagiu ao pedido do PS para apagar as declarações da IL, lamentou e criticou duramente a intervenção da deputada Isabel Guerreiro dizendo que o Parlamento se deparou com o “peso do rolo compressor do PS”. “Quis apagar declarações de deputados e soubemos o que foi voltar o lápis azul à democracia e ao sistema político português”, enalteceu o social-democrata.

Luís Gomes realçou ainda que esta é uma prova de que existe “desrespeito pelas regras da Assembleia da República” e de que “o Governo tudo quer poder para levar a bom porto as suas ideias”.