O recado está dado. Apesar de o PS ter aceitado entrar no processo de revisão constitucional, António Costa abriu a apresentação do projeto dos socialistas fazendo questão de marcar os limites até onde o PS admite ir e desfazer, desde já, a ideia de que pode haver entendimentos mais alargados com o PSD, e muito menos com o Chega: “As revisões não são de quem as inicia, mas de quem as conclui. E a que vai haver será a que contará com os votos do PS”, avisou, puxando dos galões da maioria e rejeitando que a versão final vá ser a que a direita defende.

Foi na abertura da reunião da Comissão Política do PS, que começou, esta quinta-feira, no meio do turbilhão político causado pela demissão de Miguel Alves, que Costa falou aos deputados e dirigentes do PS. E também deixou recados para dentro: “É claro que para todos nós que a revisão não é uma prioridade para o país”, reforçou, deixando claro aos socialistas ali convocados para debater e deixar contributos que a ideia não é fazer qualquer tipo de revisão aprofundada. “Não nos podemos distrair do essencial”.

As prioridades do país e do mundo (ou pelo menos do Governo e do PS), definiu Costa, passam nesta altura pelos efeitos da inflação, contrariar o risco de recessão, a necessidade de proteger o emprego e o rendimento, combater as alterações climáticas ou até assegurar que “a Rússia não ganha a guerra”. E, contrariando as “ambições” dos constitucionalistas, recusou “revisitar questões institucionais”, coisa que no contexto atual “nenhum português compreenderia” — isto no mesmo dia em que o PSD apresenta propostas precisamente relativas à organização política, como baixar a idade do voto para 16 anos ou transformar o mandato presidencial em mandato único.

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Aos outros partidos, e à direita que decidiu abrir este processo — do qual o PS não fica de fora, mesmo considerando que “a revisão constitucional não é prioridade para o país” — deixou avisos: esta revisão não será “do Chega” (“não passa, não passará”) nem da leitura “liberal de PSD e IL”, mas apenas uma revisão para “melhorar a Constituição numa leitura progressista” e corrigir problemas detetados pela “experiência”.

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Serão esses os que provocarão as mudanças mais significativas: como o Observador adiantou, a primeira ideia é mudar a Constituição para responder às “dúvidas sobre constitucionalidade” das medidas tomadas na pandemia, incluindo o confinamento obrigatório de quem está infetado ou teve um contacto de risco, assim como medidas de caráter mais “amplo”, para as quais o Governo “teve de recorrer ao estado de emergência”. “Verificámos, como realidade da vida, que podemos ter de recorrer a esses mecanismos de forma mais sincronizada para proteção da saúde. É melhor nem tentarmos imaginar quantas vidas se teriam perdido se não tivéssemos adotado medidas de confinamento”, avisou.

A outra mudança mais substancial terá a ver com os metadados, confirmou, para permitir aos serviços de informações acesso não a “conversas” mas a “dados de localização e comunicação”, “fundamentais para combater em particular os que ameaçam a segurança nacional”. Neste ponto, argumentou Costa, impõe-se o direito à segurança e o dever de combate ao terrorismo por parte do Estado.

O resto das mudanças serão mais cirúrgicas e de linguagem: o primeiro-ministro deu exemplos como a “atualização da linguagem” numa era em que a humanidade “não é binária” — ou seja, no texto fundamental deverá passar a ler-se “direitos humanos” em vez de “direitos do Homem”, ou prever a não discriminação “em função da identidade e o género”. Isto a somar a novos direitos digitais que devem ser incluídos no texto, assim como o direito a uma alimentação acessível ou o reforço dos direitos laborais e combate à precariedade.

Há ainda normas programáticas que devem ser “desenvolvidas”, dando mais força ao combate às alterações climáticas, à coesão territorial e alterando as referências ao “valor social da propriedade” — “protegendo-o mas não ignorando que não é direito fundamental e que às vezes é preciso ceder quando há valores superiores”. De resto, mais referências ao combate à violência doméstica, aos maus tratos animais, um alargamento das referências sobre saúde à saúde mental e cuidados paliativos, entre outros exemplos: “Uma Constituição mais moderna, mais cosmopolita”, resumiu.

Em conclusão, Costa tentou limitar o objetivo da reunião — ainda antes de ouvir os socialistas — a trabalhar para “melhorar a Constituição, sem distrair do essencial”. Lá fora, ouviam-se gritos de manifestantes contra as medidas restritivas da pandemia: “Constituição sim, ditadura não!”.