Entre os assuntos que mais têm captado a atenção de Miguel Seabra nos últimos anos estão as entusiasmantes possibilidades de reverter o envelhecimento celular. “Talvez por causa da minha própria idade”, diz o investigador. “Acabei de fazer 60 anos.”

Sentado no gabinete da Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa (Nova Medical School), onde dirige um grupo de investigação sobre mecanismos moleculares da doença, o cientista está pouco interessado nos cenários mais futuristas relacionados com o envelhecimento, como o aumento da esperança média de vida ou a criopreservação. Para Miguel Seabra, os desafios científicos são mais imediatos: “Como minorar o impacto das doenças crónicas que afetam a qualidade de vida a partir de certa altura.”

Na última década, a investigação na área do envelhecimento celular permitiu perceber que há capacidade para retardar este processo e há cada vez mais estudos, muito promissores, a decorrer por todo o mundo. O seu próprio grupo de investigação não é exceção: um dos projetos que tem em curso pretende precisamente encontrar formas de travar a degenerescência macular da idade (DMI), uma doença crónica causada pelo processo de envelhecimento do olho.

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O nome da doença é auto-explicativo: com a idade, a mácula – a pequena região no centro da retina, que nos permite ver com nitidez e detalhe – deteriora-se. “Dentro do olho temos um tecido sensível à luz, a retina, que é o que nos permite ver”, explica o cientista. “É um tecido altamente complexo, com várias camadas de células que trabalham em conjunto para fazer a perceção da luz e enviar ao cérebro os sinais necessários para conseguirmos ver uma imagem.”

A idade desencadeia processos que causam atrofia e morte celular do tecido fotossensível da mácula, o que implica uma perda de visão progressiva que, nas formas mais agressivas, leva a uma cegueira completa.”

Nos países desenvolvidos, a DMI é a doença mais comum da retina e a principal causa de cegueira na população idosa. Considerando as suas fases iniciais e assintomáticas, estima-se que, em todo o mundo, a patologia afecte 10 a 13% dos adultos acima dos 65 anos. Em Portugal, o Coimbra Eye Study – o primeiro estudo sobre a prevalência DMI no país, publicado em 2015 – estima que acima dos 55 anos haja cerca de 400 mil pessoas com sinais da doença, sendo que, desses, 37 mil tem formas tardias e mais graves.

O problema da DMI não está na dificuldade de diagnóstico, mas na falta de opções de tratamento. “Os oftalmologistas começam a ver sinais da doença muito precocemente, acompanham a sua progressão, mas não podem intervir muito significativamente porque não tem cura”, esclarece o investigador. Apesar de haver algumas opções de tratamento para agudizações ou complicações tardias, nomeadamente a DMI neovascular, estas intervenções, muito invasivas, são feitas apenas numa fase terminal da doença. Até lá, escasseiam as opções.

“É possível que estas doenças relacionadas com a idade nunca venham a ter terapias curativas, mas se conseguirmos atrasar os primeiros sintomas, estamos a dar mais anos de vida saudável às pessoas, e neste caso à visão”. É isso que Miguel Seabra e a sua equipa estão apostados em fazer: entender os mecanismos moleculares que estão na origem da DMI, para encontrar soluções eficazes para impedir a sua progressão.

Objetivo: rejuvenescer a retina

Para intervir numa doença crónica relacionada com a idade, explica o cientista, “é preciso compreender e retardar, por um lado, os fatores do envelhecimento celular generalizados, por outro, aqueles que são particulares da doença”. No caso da DMI, os fatores específicos que levam à disfunção nas células fotorreceptoras do olho parecem ter origem no epitélio pigmentar, a camada mais externa da retina que, além de lhe dar cor, é responsável por manter o tecido nervoso saudável.

“As células fotorrecetoras [que recebem a luz e a transformam num impulso nervoso dirigido ao cérebro] precisam de muito apoio para funcionar e são as células do epitélio pigmentar da retina que providenciam esse apoio, incluindo a reciclagem dos componentes que os fotorrecetores usam para poder funcionar”, explica Miguel Seabra. Parece ser esse o mecanismo que começa por falhar. “A ausência desta reciclagem faz com que se acumule uma espécie de lixo celular.” O lixo acumulado na mácula, com o tempo, acaba por matar as suas células fotorreceptoras, conduzindo às deficiências visuais.

Com o projecto NRF2 as a novel therapeutic target in early and intermediate age-related macular degeneration, a equipa de Miguel Seabra vai inovar de duas formas: tentando intervir numa fase muito precoce da doença, ainda assintomática, e usando mecanismos naturais da célula. “Vamos estimular mecanismos de proteção anti-oxidativos, que existem nas células e que são anti-envelhecimento. A ideia é melhorar toda a homeostase celular e fazer com que as células consigam lidar melhor com o tal lixo celular.”

Vão, para isso, testar – primeiro em células, depois em modelos animais – várias moléculas ativadoras do NRF2, que desencadeiam a proteção oxidativa e aumentam a resistência à agressão e morte celular. Uma delas é o fumarato de dimetilo, um medicamento que já se encontra aprovado, mas para o tratamento da esclerose múltipla. “Verificámos que esse fármaco tem potencial para prevenir a degeneração da retina, por isso, vamos avançar com uma perspetiva de ‘repurposing’ [processo através do qual fármacos já existentes são aprovados para novas indicações terapêuticas].”

Em colaboração com António Cuadrado, bioquímico e farmacologista, especialista em mecanismos de ativação da molécula NRF2, da Universidade Autónoma de Madrid, vão fazer uma análise mais detalhada às potencialidades deste medicamento, bem como de outros ativadores da NRF2 que o espanhol tem estado a desenvolver.

O investigador com alguns investigadores do seu grupo de trabalho: Ana Fonseca, Beatriz Felgueiras, Sandra Tenreiro, Olga Carreira, Mariana Castro, Rita Coelho, Pedro Antas e Luisa Lemos

Simultaneamente, esses estudos serão complementados por um ensaio clínico observacional, feito em parceira com equipas de neurologia e de oftalmologia, dos hospitais de São José e Egas Moniz: pacientes com esclerose múltipla a quem é prescrito o medicamento aprovado para efeitos de controlo dessa doença, vão ser alvo de um estudo oftalmológico antes e depois de tomarem o fármaco, para se verificar se há um rejuvenescimento da retina.

Da medicina à ciência fundamental

Miguel Seabra apaixonou-se por Medicina durante a licenciatura, na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Mas, pouco tempo depois, surgiu-lhe uma paixão ainda mais forte e mais compatível com o seu modo de ser: descobrir os mecanismos celulares e moleculares subjacentes às doenças e fazer parte do maravilhoso mundo da investigação biomédica que estava a gerar novos conceitos e novas tecnologias todos os dias.

“No início a clínica era apaixonante, mas depois percebi que gosto mais de ter incógnitas, alguma especulação e menos dogma. Comecei a perceber que a prática clínica poderia não me preencher completamente.” Em 1988, terminado o internato geral, estava a caminho do Southwestern Medical Center, da Universidade do Texas, em Dallas, nos Estados Unidos, para fazer doutoramento em Bioquímica e Biologia Molecular, com uma Bolsa Fulbright.

Abandonar uma carreira de médico não era coisa que se fizesse de ânimo leve nos anos 1980. Os pais, recorda-se, não apreciaram a ideia. “O meu pai, em particular, ficou um pouco desapontado. Era oftalmologista e tinha a expectativa que eu seguisse um percurso idêntico ao dele. Sempre me apoiaram, mas sei que achavam que eu estava a deitar fora uma carreira em troco de uma aventura.”

Curiosamente foi desenvolver o trabalho de doutoramento para o laboratório de investigação de dois laureados com o Prémio Nobel da Medicina: Michael Brown e Joseph Goldstein que, em 1985, receberam o galardão pelas descobertas na área da absorção e regulação do colesterol, um avanço que permitiu desenvolver os medicamentos que reduzem os níveis de colesterol, as estatinas.

Foi como voltar aos bancos da escola. “Algumas pessoas que fizeram Medicina sentem-se cientistas amadores, eu considero-me um cientista profissional desde há muito: o doutoramento foi uma espécie de recruta militar em ciência fundamental. Um treino a sério.” A primeira aprendizagem foi, desde logo, passar a conduzir-se por outro paradigma que lhe permitiu deixar de lado o dogma que não apreciava. “Na medicina temos de tratar o doente de acordo com os protocolos, sem os questionar. Na ciência aprendemos a duvidar e a questionar tudo.”

Do doutoramento passou para os comandos do seu próprio laboratório de investigação, ainda na Southwestern Medical Center. Estava longe de ter um interesse especial em patologias da visão, mas deu-se o caso de estar a trabalhar no gene que se descobriu ser responsável pela coroideremia, uma degeneração hereditária da retina. “Eu considerava-me muito mais um biólogo celular do que um cientista da visão, mas como era uma doença rara, pela qual ninguém se interessava, tornamo-nos, por defeito, especialistas mundiais naquela doença”. Acabou por desenvolver uma “vida científica dupla”: “tinha o meu laboratório dividido em dois grupos, um a fazer coisas ‘normais’ em biologia celular, outro a investigar esta doença.”

Em 1997 mudou-se para o Imperial College London, onde dirigiu, entre 1999 e 2007, a unidade de Medicina Molecular e Celular. O trabalho desenvolvido na área da coroideremia, que manteve em Londres, acabou por dar origem a uma terapia genética, testada num ensaio clínico em 2011.

Sente-se orgulhoso do trabalho que fez à frente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), de que foi presidente entre 2012 e 2015, durante o difícil período da Troika. Mas não guarda saudades. “Quase arruinou a minha carreira científica: quando voltei ao meu laboratório anos depois, tive de reconstruir tudo quase de raiz.”

Além do laboratório de investigação que dirige na Universidade Nova de Lisboa, onde também é professor catedrático, integrou recentemente a Fundação Champalimaud e aí dirige um grupo de investigação que tem por objetivo tentar desenvolver terapias inovadoras de baixo custo – genéticas ou celulares – que possam melhorar o tratamento de doenças da visão no mundo.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de pontae é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto NRF2 as a novel therapeutictargetinearlyandintermediateage-related macular degeneration, liderado por Miguel Seabra, da Nova medical School, foi um dos 33 selecionados (13 em Portugal) – entre 546 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. O investigadora recebeu 985 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As candidaturas para a edição de 2022 encerraram a 15 de novembro. Os prazos da edição de 2023 deverão ser conhecidos no primeiro semestre do próximo ano.