É considerado o maior escândalo de corrupção na União Europeia dos últimos anos. A detenção de uma das vice-presidentes do Parlamento Europeu, Eva Kaili, que conquistou o cargo há pouco menos de um ano, apanhou de surpresa o coletivo de eurodeputados e obrigou a cúpula europeia a distanciar-se do caso — e a afastar a vice de Roberta Metsola de todos os seus cargos. Mas trouxe respostas: assim já se percebe porque é que Eva Kaili elogiou as reformas trabalhistas do Qatar no mesmo dia em que o Parlamento que co-lidera fazia precisamente o contrário.

Em causa está um esquema para influenciar a opinião pública — e, mais do que isso, as políticas da Comissão Europeia no Médio Oriente — a favor do Qatar agora que todos os holofotes recaem sobre aquele país por causa do Mundial de 2022. O envolvimento de Eva Kaili vai ao ponto de uma delegação oficial da União Europeia ter sido desconvidada pelo governo qatari para uma visita ao país na primeira semana de novembro, mas a vice-presidente do Parlamento ter visitado o Qatar logo depois.

Já esta segunda-feira de manhã, Josep Borrel, líder da diplomacia europeia, reagiu com muita preocupação à detenção da vice-presidente do Parlamento Europeu, mas deixa a investigação para a Justiça, disse aos jornalistas antes de uma reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE.

Quem é Eva Kaili, a vice-presidente do Parlamento Europeu detida em Bruxelas?

Eva Kaili, 44 anos, nasceu na cidade grega de Tessalónica. Estudou arquitetura e engenharia civil na universidade da terra natal, tendo depois viajado para Atenas a fim de tirar o mestrado em Assuntos Internacionais e Europeus. Desde 2014 que está inscrita num doutoramento em Políticas Europeias Internacionais na Universidade de Atenas, mas ainda não o terminou.

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A carreira profissional de Eva Kaili começou na comunicação social: entre 2004 e 2007, foi locutora da Mega Channel e conhecida em toda a Grécia. A carreira política de Eva Kaili começou precisamente em 2004, quando se candidatou nas eleições nacionais. Três anos mais tarde foi efetivamente eleita para o Parlamento grego e tornou-se no membro mais jovem do PASOK (onde entrou em 1992) na assembleia, onde se manteve até 2012.

Suspenso mandato da vice-presidente do Parlamento Europeu detida por corrupção. Quem é Eva Kaili?

Nesse ano, tornou-se consultora de comunicação estratégica em farmacêuticas gregas e meios de comunicação social. Quando saiu, foi para se juntar à Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas e tornar-se eurodeputada. Foi a primeira mulher a ocupar os cargos de presidente do Órgão de Avaliação de Opções de Ciência e Tecnologia, presidente do Centro para a Inteligência Artificial e presidente da Delegação para as Relações com a Assembleia Parlamentar da NATO. E chegou a vice do Parlamento Europeu em janeiro deste ano.

Agora, Eva Kaili é suspeita de ter recebido dinheiro e presentes para defender o Qatar em relação aos direitos humanos — tudo isto numa altura em que se joga naquele país o Mundial de futebol masculino, em estádios construídos por trabalhadores com condições precárias, muitos dos quais morreram nas obras das infraestruturas nos últimos anos.

Do que está acusada?

Eva Kaili é suspeita dos crimes de organização criminosa, corrupção e lavagem de dinheiro, de acordo com a informação disponibilizada pela polícia federal da Bélgica, que realizou na sexta-feira 16 buscas em que se apreenderam 600 mil euros em dinheiro e produtos eletrónicos como telemóveis e computadores. Este domingo, as autoridades determinaram a prisão preventiva para Eva Kaili. Segundo o Economic Times, foram encontrados “sacos de dinheiro” na casa de Eva Kaili e dos outros detidos.

Vice-presidente do Parlamento Europeu Eva Kaili detida em Bruxelas por suspeitas de corrupção

Há mais pessoas detidas por envolvimento no esquema?

Sim. O marido da vice-presidente, Francesco Giorgi, fundador da organização não-governamental Fight Impunity e consultor do Parlamento Europeu para a região do Médio Oriente e Norte de África, também foi detido na sexta-feira.

Outro detido é Pier Antonio Panzeri, que é o presidente da Fight Impunity. Esta organização “luta contra a impunidade por violações de direitos humanos e pela justiça de transição”, como pode ler-se na página oficial no Twitter daquela organização. Um documento a que o Politico teve acesso diz que o ativista foi detido por “intervir politicamente com membros que trabalham no Parlamento Europeu em benefício do Qatar e de Marrocos”. A mulher e a filha foram detidas nesse mesmo dia à noite em Itália.

Niccolò Figà-Talamanca, diretor-geral da No Peace Without Justice, também foi detido. O site oficial diz que esta organização não-governamental “trabalha para a proteção e promoção dos direitos humanos, da democracia, do Estado de direito e da justiça internacional, e compromete-se a trabalhar dentro de três programas temáticos principais: justiça penal internacional; género e direitos humanos; e democracia no Médio Oriente e África do Norte”. Os escritórios da No Peace Without Justice tem a mesma morada em Bruxelas que a Fight Impunity, notou o Politico.

O quarto detido foi Luca Visentini, secretário-geral da Confederação Sindical Internacional (ITUC) e antigo líder da Confederação Europeia de Sindicatos. Ambas as confederações partilham a mesma morada em Bruxelas, tal como acontece entre a Fight Impunity e a No Peace Without Justice.

Como funcionava o esquema de corrupção com Eva Kaili?

Um comunicado partilhado pela polícia belga, que deteve Eva Kaili em Bruxelas, confirmou que “há vários meses que os investigadores da Polícia Federal suspeitam de que um país do Golfo está a influenciar as decisões económicas e políticas do Parlamento Europeu ao pagar quantidades avultadas de dinheiro ou oferecer grandes presentes a terceiros com uma posição política e estratégica significativa dentro do Parlamento Europeu”.

O esquema de corrupção em que Eva Kaili alegadamente está envolvida é uma campanha para influenciar a opinião pública dentro da Europa — e da própria Comissão Europeia —, fazendo-a crer que o Qatar é, afinal, um país mais evoluído do que se julga no que diz respeito ao cumprimento dos direitos humanos.

Como recorda o Politico, obter uma opinião pública positiva na Europa é importante para o governo do Qatar porque está a ser debatido neste momento um mecanismo para que os qataris possam viajar para o espaço Schengen sem visto. Por outro lado, com as torneiras do gás natural russo fechadas para a Europa, o Qatar e os países da União Europeia estão em conversações para firmar um acordo de abastecimento com gás natural qatari.

O esquema terá sido estabelecido depois de o país ter vencido o concurso para receber o Mundial 2022, em 2010, com três objetivos: afastar as suspeitas de suborno no processo de licitação; contrariar as duras críticas relativas às leis qataris incompatíveis com os direitos das mulheres e da comunidade LGBT+; e contrariar as evidências de que os indivíduos envolvidos na construção dos estádios foram submetidos a condições de trabalho desumanas.

A função de Eva Kaili era transmitir mensagens positivas sobre o Qatar e contribuir assim para uma opinião pública mais favorável ao país. A 14 de novembro, a vice-presidente do Parlamento Europeu dirigiu-se ao Comité de Justiça e Assuntos Internos — a que pertencem os ministros da Justiça e os da Administração Interna de todos os Estados-membros — e votou a favor de uma proposta para permitir aos cidadãos do Qatar e do Kuwait viajarem no espaço Schengen sem necessidade de terem vistos.

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No dia 24 do mês passado também afirmou que o Mundial 2022 estava a contribuir para uma “transformação histórica” do país no que concerne à aplicação dos direitos humanos. “Hoje, o Campeonato do Mundo no Qatar é a prova de como a diplomacia desportiva pode culminar numa transformação histórica de um país”, disse num plenário em que os eurodeputados emitiram uma resolução que destacava “a morte de milhares de trabalhadores migrantes”.

A 1 de novembro, Eva Kaili viajou para o Qatar a título pessoal convidada pelo Conselho Shura, um órgão consultivo do país, ter cancelado a visita oficial da Delegação do Parlamento para as Relações com a Península Arábica. O mesmo conselho que um mês antes cancelou uma viagem que serviria para a delegação visitar as infraestruturas construídas para o Mundial e apurar as supostas reformas introduzidas pelo governo na lei do trabalho.

Na viagem, segundo o The Peninsula Qatar, Eva Kaili terá dito que estava “muito ciente do grande progresso atingido pelo Qatar no campo do mercado laboral, que é elogiado pelo Parlamento Europeu” e que os contactos com a Organização Internacional do Trabalho confirmaram que “o Qatar pode ser um modelo para os países da região e mais além nesse campo”. A vice-presidente também afirmou que estava no país “a representar o Parlamento Europeu e os seus presidentes em nome de 500 milhões de cidadãos europeus de 27 países europeus, que acompanham com grande interesse os progressos alcançados pelo Estado do Qatar na área social, pois reflete os nossos valores e princípios.”

Como respondeu o Parlamento Europeu à detenção?

Roberta Metsola, líder do Parlamento Europeu, suspendeu Eva Kaili de todas as funções na assembleia — incluindo a de vice-presidente. Em comunicado, fonte oficial de Roberta Metsola anunciou que a presidente do Parlamento Europeu “decidiu suspender com efeito imediato todos os poderes, deveres e tarefas que foram delegados a Eva Kaili na qualidade de vice-presidente” por causa das “investigações judiciais em curso realizadas pelas autoridades belgas”.

O comunicado foi emitido horas depois de Roberta Metsola ter tweetado sobre o assunto, distanciando-se das suspeitas que recaem sobre uma das suas vice-presidentes: “O Parlamento Europeu posiciona-se firmemente contra a corrupção. Nesta fase, não podemos comentar sobre nenhuma investigação em andamento, exceto para confirmar que cooperamos totalmente com todas as autoridades policiais e judiciais relevantes. Faremos tudo o que pudermos para ajudar o curso da justiça.”

Vice-presidente do Parlamento Europeu fica em prisão preventiva

Logo no dia da detenção, Eva Kaili também foi afastada do Movimento Socialista Pan-Helénico (PASOK), partido a que pertence na Grécia. “Na sequência dos últimos desenvolvimentos e da investigação das autoridades belgas à corrupção de responsáveis europeus, a eurodeputada Eva Kaili está expulsa por decisão do presidente Nikos Androulakis”, pode ler-se no Twitter.

O Grupo Socialista e Democrático, a que Eva Kaili pertence no Parlamento Europeu enquanto independente, também já se afastou da vice-presidente da assembleia. Também no Twitter, a equipa publicou: “O grupo dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu tomou a decisão de suspender a participação da deputada Eva Kaili no Grupo S&D com efeito imediato, em resposta às investigações em curso”.

Partido Socialista Europeu “completamente surpreendido” com detenções

O que disse o governo do Qatar?

Fonte oficial do governo do Qatar recusou qualquer envolvimento neste esquema de corrupção. Um comunicado publicado já este domingo diz que “qualquer associação do governo do Qatar com as alegações relatadas é infundada e gravemente mal informada”: “O Estado do Qatar trabalha por meio do envolvimento de instituição para instituição e opera em total conformidade com as leis e regulamentos internacionais.”