Os partidos recusaram esta quinta-feira a proposta do Chega de introduzir na Constituição o “dever de conhecer a língua e a cultura portuguesa” para adquirir a nacionalidade, numa discussão que aqueceu com referências a José Saramago e à mesquita da Mouraria.
A proposta do partido liderado por André Ventura queria acrescentar no artigo que define a cidadania portuguesa uma nova obrigação: “Todos os cidadãos de nacionalidade portuguesa têm o dever de conhecer a língua e a cultura portuguesa”.
Um dos elementos identificativos da cidadania é a língua e a cultura. Entendemos que a nacionalidade portuguesa deve ser atribuída apenas a quem conhecer a língua e a cultura portuguesa”, defendeu o deputado e presidente do Chega, na reunião da comissão eventual de revisão constitucional.
O coordenador da bancada socialista, Pedro Delgado Alves, salientou que a Constituição portuguesa é “parcimoniosa na atribuição de deveres” e ironizou que “os cidadãos portugueses no momento no nascimento não falam uma palavra de português, não conhecem a lírica camoniana nem leram ‘O Livro do Desassossego'”, de Fernando Pessoa.
Mesmo na nacionalidade adquirida, a lei define que assenta no conhecimento suficiente da língua, a escala desse conhecimento não deve estar na Constituição. O PS votará contra”, disse.
O PSD, pela deputada Catarina Rocha Ferreira, rejeitou igualmente a proposta, questionando se se “pretende inconstitucionalizar a lei da nacionalidade”, enquanto o coordenador social-democrata, André Coelho Lima, foi mais longe e lembrou que tal regra não teria permitido a atletas como PabloPichardo ou Francis Obikwelu terem a nacionalidade portuguesa.
Pela IL, João Cotrim Figueiredo defendeu igualmente que basta a referência já existente na lei da nacionalidade e ironizou: “Em termos de conhecimento da língua portuguesa, alguns elementos do grupo parlamentar do Chega não passariam neste crivo, a julgar pela redação de algumas propostas do Chega”.
A deputada do PCP Alma Rivera considerou a proposta absurda e “um subterfúgio para limitar a atribuição da nacionalidade”, acusando o Chega de adotar uma atitude de permanente desprezo pela cultura portuguesa, exemplificando que “votou contra” um voto de saudação ao Nobel da Literatura José Saramago.
Na mesma linha, a deputada única do PAN Inês Sousa Real considerou que esta proposta “não é inocente e traz um cunho ideológico e a agenda conhecida do Chega“, enquanto Rui Tavares, pelo Livre, apontou que poderia ilegalizar centenas de milhares de cidadãos com nacionalidade portuguesa, nomeadamente em Macau ou Timor, e questionou igualmente como se definiria o conhecimento da cultura.
Aqui há uns tempos ouvi o deputado municipal do Chega dizer que a mesquita da Mouraria era um entorse à tradição do local”, criticou, frisando que “a palavra Mouraria não é assim por acaso”.
Na réplica, André Ventura avisou que “os que querem usar este fórum para fazer ataques grotescos ou piadas de mau gosto” terão resposta.
Não aceito que alguém diga que um deputado municipal fez um entorse à linga portuguesa, quando teve uma deputada do seu partido a fazer entorses seguidos à língua portuguesa durante o mandato inteiro, a que depois disse que era mentirosa e até mandou sair do partido. Isso é que foram entorses”, apontou, numa referência a ex-parlamentar do Livre Joacine Katar Moreira.
Esta frase provocou uma chamada de atenção do presidente da comissão, o social-democrata José Silvano, contra “linguagem abusiva” e algum burburinho na sala, motivando nova ronda de intervenções dos vários partidos num tom geral de apelo à elevação do debate.
Antes, a maioria dos partidos tinham também manifestado a sua oposição a propostas do Chega e do PAN para alterar o artigo 1.º da Constituição, que define o que é a República Portuguesa.
O partido de Ventura pretendia introduzir a palavra “trabalho” — dizendo que era uma ideia original do fundador do PSD Francisco Sá Carneiro — e Inês Sousa Real queria acrescentar nesse artigo o “respeito pela natureza e pelos animais”.
A maioria dos partidos, incluindo PS e PSD (cujo voto é necessário para aprovar qualquer alteração à Constituição), considerou que essas referências serão melhor tratadas em outros artigos da lei fundamental.
A discussão parou esta quinta-feira no artigo 4.º da Constituição e José Silvano informou que, a partir de março, haverá duas reuniões semanais (às terças às 17h30 e às quintas, após plenário) e que se poderão estender, pelo menos, até às 23h00.