A forma como Primoz Roglic sofreu um problema mecânico numa zona de maior trepidação a subir, fez sinal à equipa para substituir a bicicleta, recuperou o ritmo infernal que levava como se não tivesse sequer parado e cerrou dentes para roubar a camisola rosa a Geraint Thomas acabou por tomar conta do dia de todas as decisões no Giro. Ali, entre tantas vitórias e derrotas ao longo de três semanas, a euforia de um vencedor e a resignação de um vencido centraram todas as atenções como se nada mais existisse à volta. Contudo, havia. Havia e não era pouco. Porque sem ter de sair muito daquela órbita onde um meteorito esloveno da Jumbo bateu o mais resistente da constelação de estrelas da Ineos (ficando aquela ideia de que Tao Geoghegan Hart poderia ter mudado essa história se não fosse a queda e fratura da anca) andou a gravitar João Almeida.

O extraterrestre Roglic mostrou o orgulho que é ter um humano português como João: Almeida consegue primeiro pódio de sempre no Giro

O português viveu um pouco de tudo até chegar a Roma. Ganhou tempo em cortes inesperados feitos perto do fim da etapa, não evitou uma ida ao chão quando um corredor à sua frente caiu. Teve um contrarrelógio a arriscar tudo com um excelente tempo, teve outro mais modesto por não querer arriscar nada (perante o piso molhado pela chuva). Assumiu a frente de algumas etapas de montanha, não resistiu aos ataques ou contra-ataques noutras. Contou com uma equipa de luxo e a voar após o segundo dia de descanso, viu quase todos cederem um pouco mais cedo do que esperado numa das tiradas de alta montanha. Quando entrou no contrarrelógio decisivo de Monte Lussari, que tinha preparado bem quando fez o estágio em altitude antes do Giro, o português precisava de um pequeno “milagre” para ganhar mas atingira algo muito relevante.

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É certo que o ano de 2020 e o brilharete com duas semanas de camisola rosa até ao quarto lugar final quando estava ainda na Deceuninck Quick-Step foi sobretudo uma prova, para os outros e para ele próprio, que era um voltista capaz de resistir a três semanas duras na estrada. A partir daí seguiu-se a sexta posição em 2021, a desistência em 2022 após contrair Covid-19 quando seguia em quarto a poder ambicionar ao lugar mais baixo do pódio e um quinto lugar na Vuelta de 2022. O que faltava ao português, agora como líder da UAE Team Emirates? Ganhar uma etapa numa grande volta e fechar no pódio uma grande volta. Ou seja, tudo o que veio a acontecer nesta edição do Giro. E a camisola branca da juventude foi quase um bónus.

Camisolas rosa, gritos e caracóis em A-dos-Francos para ver João Almeida

“Os adversários foram mais fortes. Vejam o Primoz [Roglic], até mesmo com o problema mecânico ganhou de forma clara. Foi o mais forte e mereceu. Parabéns para ele, porque mereceu. Na primeira parte senti-me fantástico no contrarrelógio. Estava um pouco nervoso mas assim que comecei a subir senti-me ainda melhor. Estou contente com o meu esforço. O terceiro lugar é muito bom, estou feliz com o resultado. Ir ao pódio? Estou a evoluir a cada ano. Estou muito satisfeito e a olhar para o futuro. Foi um bom Giro. Roma? Sim, quero muito chegar, entrar na frente e especialmente ir de férias depois”, comentou o português.

Um pódio 44 anos depois de Agostinho, a vitória na camisola branca. “Era o meu objetivo, o primeiro de vários”, diz Almeida

“Acho que foi muito bom. Consegui o meu objetivo e também ganhei uma etapa. Estou muito satisfeito e já estou a olhar para o futuro. Esperemos que isto seja apenas o começo. Tentei fazer uma boa etapa e não rebentar comigo mesmo. Creio que fiz uma boa subida, a melhorar a cada quilómetro. Estou muito feliz. O Primoz foi absolutamente incrível. Esperava que fossem mais rápidos do que eu. Acho que estive na cadeira uns 20 segundos, nem deu para desfrutar. Mas estou feliz com o meu resultado e já estou a pensar no dia de amanhã [em Roma]”, destacara também em declarações prestadas ao Eurosport.

“O que é que se sente nesta altura? Muita felicidade, foi um objetivo concluído com muito sucesso. Houve uma vitória em etapa, houve o terceiro lugar na geral… Estou mesmo muito feliz e pronto, que venha o descanso agora”, começou por comentar depois o corredor caldense em entrevista à RTP. “Acho que não faltou nada, fiz o que consegui, dei o meu máximo todos os dias mas os adversários foram mais fortes. Eu estou contente com a corrida que fiz, fui muito regular e só traz coisas positivas para o futuro. Também estou muito satisfeito com a equipa, deram tudo por mim, fizeram tudo por mim e estou grato a todos eles, à minha família, à minha namorada e a todos aqueles que me apoiam. Atingir um pódio de uma grande volta 44 anos [como Joaquim Agostinho] depois é muito positivo mas foco-me mais em mim porque esse era o meu objetivo, o primeiro de vários”, prosseguiu João Almeida após a etapa numa quase “consagração”.

A forma como o terceiro lugar foi festejado por família e apoiantes presentes em Itália e a maneira como a UAE Team Emirates foi elogiando o corredor português mostrou bem a separação mais importante de fazer após três semanas que foram das mais duras numa Volta a Itália (daí que o número de abandonos a meio fosse algo que não se via há 30 anos): é bom sonhar com uma vitória numa grande volta e essa deverá ser sempre a aspiração máxima de quem continua a evoluir, mas um terceiro lugar num Giro como estes a ganhar uma etapa como a de Monte Bondone, não sendo “a” vitória, é uma vitória. E era isso que João Almeida iria sentir este domingo em Roma, para 135 quilómetros quase de passeio a fechar a prova que pode não fazer em 2024, caso a equipa permita que possa ter a primeira experiência no Tour ao lado de Pogacar.

O dia em que todos perceberam quem é João Almeida: português vence no Monte Bondone e sobe a segundo do Giro

Mark Cavendish, numa etapa onde o primeiro classificado podia ser quase um intérprete secundário, ganhou ao sprint a 21.ª e última tirada antes de começar a consagração dos vencedores que teve início com a melhor homenagem possível ao corredor da Astana que fazia a despedida aos 38 anos. E João Almeida seria um dos protagonistas com duas idas ao pódio, pelo terceiro lugar na classificação geral e também pela vitória na camisola da juventude. Além do português e do vencedor da etapa, era a celebração de Primoz Roglic (geral), de Thibaut Pinot (montanha), de Jonathan Milan (pontos) e da Bahrain (equipas).

Para a história fica a classificação, com o esloveno da Jumbo a fechar com menos 14 segundos do que Geraint Thomas (Ineos) e 1.15 minutos do que João Almeida. Damiano Caruso (Bahrain, 4.40), Thibaut Pinot (Groupama, 5.43), Thymen Arensman (Ineos, 6.05), Eddie Dunbar (Jayco, 7.30), Andreas Leknessund (DSM, 7.31), Lennard Kämna (Bora, 7.46) e Lauren de Plus (Ineos, 9.08) fecharam o top 10.