“Não há amor que resista a 24 horas de filosofia”. As palavras de Camilo Castelo Branco, que entraram no romance Mistérios de Lisboa, com três volumes, tendo o primeiro sido publicado em 1854, nunca fizeram tanto sentido. Ainda que a estátua erguida no Largo Amor de Perdição, no Porto, que mostra o escritor a abraçar uma mulher nua, tenha sobrevivido a bem mais do que isso, poderá mesmo ser removida.
A obra da autoria de Francisco Simões foi instalada no largo junto ao Campo os Mártires da Pátria em 2012, com o objetivo de honrar as figuras femininas presentes nas novelas do escritor. No entanto, ao longo dos anos, a mulher nua que abraça Camilo Castelo Branco tem sido confundida com Ana Plácido, o grande amor da sua vida.
Aliás, o local escolhido para a instalação da estátua Amores de Camilo não o foi por acaso. Está situada junto à antiga Cadeia da Relação — agora Centro Português da Fotografia — onde ambos foram detidos, enquanto aguardavam julgamento para saber se seriam condenados pelo crime de adultério.
Camilo Castelo Branco e Ana Plácido acabaram por sair em liberdade, tendo casado quase 40 anos depois do seu primeiro envolvimento. E, do tempo em que o escritor esteve na prisão, resultou a obra Amor de Perdição, que deu o nome ao largo onde está a estátua. Que poderá vir a desaparecer de lá.
Segundo o jornal Público, uma petição, assinada por 37 pessoas, nomeadamente o advogado e ex-líder do CDS e conselheiro de Estado, António Lobo Xavier, o antigo deputado comunista Honório Novo, jurista e ex-banqueiro Artur Santos Silva e os pintores Armando Alves e Carlos Reis, foi enviada ao presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira, a pedir a remoção da estátua.
“O grande amor de Camilo foi Ana Plácido, cuja memória não merece o ultraje de se pôr o génio do Amor de Perdição e das Novelas do Minho abraçado a um exemplar mais ou menos pornográfico”, está escrito no texto da petição, que não tinha autor nem data, e a que o Público teve acesso.
Num texto de dois parágrafos, os peticionários questionaram o “desgosto estético” da estátua “despejada” no Largo Amor de Perdição, “que dizem ser de Camilo”, que veio a suscitar uma “desaprovação moral” pela mulher representada.
Desta forma, pedem a Rui Moreira o “favor higiénico de mandar desentulhar aquele belo largo de tão lamentável peça e despejá-la onde não possa agredir a memória de Camilo”, cita o Público.
O presidente da Câmara do Porto é da mesma opinião dos signatários, por isso encaminhou a petição para o vereador do urbanismo, Pedro Baganha, juntamente com a nota: “Não tendo havido qualquer deliberação municipal para erigir tão deselegante obra [na época era Rui Rio o presidente da autarquia], e concordando com o que tão ilustres cidadãos nos suscitam, solicito que se proceda à remoção daquele objeto, que deverá ficar nas reservas municipais”, escreve o mesmo jornal.
Já o autor da obra erguida há 11 anos, confessa estar perplexo com tamanho alvoroço: “O conteúdo do texto é lamentável e revela desconhecimento. Eu sempre disse que aquela mulher é simbólica – representa a mulher na obra do Camilo, no Amor de Perdição. Não é, nunca quis ser, um retrato de Ana Plácido”, garantiu Francisco Simões.
O escultor, que também é autor das Mulheres de Lisboa, as 10 estátuas dispostas na estação do Metropolitano de Lisboa do Campo Pequeno, esclareceu ainda que a Amores de Camilo representa o escritor numa idade mais avançada, em que já tinha sido afetado pela cegueira, e que “o abraço nada tem de erótico”.
É claro que esta é a minha verdade e que cada um tem direito à sua interpretação, à sua subjetividade. Não tenho a pretensão, nem nunca tive, de agradar a todos. A unanimidade em arte não existe”, completou.
Entre os signatários, está também Ilda Figueiredo, vereadora da câmara do Porto pela CDU, que diz que “não são as questões morais, nem de gosto” que a levam a tomar esta decisão, mas sim a “maneira como o homem e a mulher são tratados”.
“Ana Plácido era uma mulher extraordinária que ali é menorizada. Querem pô-la nua, muito bem, não me oponho, desde que Camilo também esteja nu. Ou os dois nus, ou os dois vestidos”, enunciou ao Público.