Para lá de nos poupar aos encómios à Web Summit, a mais concorrida de sempre, parece, a atual crise política portuguesa teve o mérito de nos revelar alguns restaurantes que não conhecíamos. Falo por mim, naturalmente. Andava com falta de ideias, um pouco cansada de tudo o que sugeriam ser no Príncipe Real, na Comporta ou em Paris e achei que podia seguir a rota dos locais onde ministros, ex-ministros e candidatos a futuros ministros têm ido almoçar uns com os outros. On gouverne mieux les hommes par leurs vices que par leurs vertus, disse um dia Napoleão e depois de Pedro Nuno Santos ter almoçado no Darwin (na fundação Champalimaud) com o convertido Francisco Assis, juntei o útil ao agradável e pensei que este momento da vida nacional não estará completo sem a petite histoire dos restaurantes onde os políticos vão combinar as coisas, fazer as pazes ou celebrar vitórias ou conspirar depois de derrotas.
Andei a pesquisar e descobri que no jornal Sol falaram de um almoço em setembro, entre João Galamba e António Costa no “Mercado”, em Alcântara, um restaurante que, segundo o jornal, “é muito frequentado pelos meios sociais e políticos da capital”. Nunca tinha ouvido falar, devo dizer, talvez porque nunca me tenham convidado, quem sabe, talvez porque não costume andar por aquela Alcântara, talvez porque não sou da política ou porque J’avais la tête en l’air.
Os políticos têm a vantagem de ter assessores para saber dos sítios e marcar mesa e motoristas para os levar e por isso podem ir a qualquer sítio. No meu caso exigiu algum planeamento (ou seja, descobrir o sítio e chamar um TVDE para me levar), porque apetite já tinha depois de ver a lista en ligne. O “Mercado” fica no mercado Rosa Agulhas (que também é) conhecido por Mercado de Alcântara, ao lado do supermercado Lidl e anuncia-se como um dos melhores locais da capital para se comer peixe e pratos tradicionais. Melhor, je suppose, o restaurante não tem nenhum problema em se promover como “verdadeiro tesouro histórico de Lisboa”. Très optimistes, julguei, não escondo que fiquei com algum entusiasmo.
[Já saiu: pode ouvir aqui o segundo episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui.]
O restaurante fica mesmo encostado ao mercado, por baixo da ponte sobre o Tejo, numa rua típica alcantarense, entre prédios pintados e prédios ainda naquela mistura de sujidade de fumo de autocarro com zona vivida. O mercado é horrendo, um daqueles edifícios modernos feito por um presidente da câmara qualquer que queria os votos. É impossível pensar outra coisa quando se vê que o edifício é um caixote enorme, majestático, que podia ter sido desenhado por um discípulo incompetente de Tomás Taveira.
Existe parking, estava cheio de bons automóveis, uns a tapar outros, numa desordem ordenada que todos compreendemos que funciona desde que ninguém se zangue. Com decoração normal de restaurante português de sucesso, daqueles amplos e ruidosos (confere), de toalhas de papel na mesa (confere), múltiplas mesas (confere), várias áreas (confere) e dois pisos (confere), empregados com polo personalizado (confere), é local de refeições em grupo, para ir com colegas ou em missão de perspetivar algum negócio, não um sítio onde levar um interesse romântico, pelo menos não ao dia de semana.
Apesar da carta apetitosa (há canivetes, ameijoa, ostra, ovas, todos os peixes do oceano, incluindo pampo, cantaril, linguadinhos, barriga de atum, pregado, etc e todas as carnes, incluindo iscas e t-bone e mesmo um arroz vegetariano para os praticantes), fui lá para cumprir a missão de escrever la chronique da política portuguesa atual e pedi o mesmo que o primeiro-ministro (segundo o jornal), ou seja, jaquinzinhos fritos (14.95 euros). Fritos em óleo cansado, vieram acompanhados de um arroz de feijão inglório, seco, escasso e sem sabor, mais próprio de um refeitório de uma escola que de um tesouro.
A minha companhia preferiu secretos de porco preto (19.95), que estavam decentes, mas nada de especial, pareciam feitos à pressa. No final, rachámos um pudim flan (3,90) honesto e passámos o resto do tempo a discutir se o bolo de bolacha (4,5) que estava no menu seria o mesmo tão popular na infância do primeiro-ministro ou se era uma nova versão, com menos açúcar e menos bolachas.
O “Mercado” não é um sítio onde se vá para comer excelentemente, mas sim, suspeito, onde se vai porque se costuma ir. O problema, pelo menos o nosso, é esse. Não se vai em busca de uma “experiência”, mas sim do conforto de um sítio do tempo em que não se pedia ao empregado se podia meter o telefone a carregar e onde se deixavam as moedas como gorjeta.
Nada de errado, l’habit fait le moine, o primeiro-ministro e o ministro não têm de ser gourmand, se calhar nem estavam com tempo, apenas foram celebrar aquela vitória em setembro sobre o presidente, mas devo confessar que esperava melhor do “Mercado”, apenas porque os políticos costumam saber onde come bem. Tanta conspiração, tanto pacto e tentativa de acordo, tanto convívio, implica beaucoup de sagesse nestas coisas da comida, mas a nossa visita foi uma desilusão.
Mais do que um tesouro, o “Mercado” é uma fábrica, um refeitório mais simpático e com mais oferta, o que devia ter percebido logo quando vi as entradas em cima da mesa e notei aquelas tostas que se vendem em sacos encostadas a uma espécie de paté. Não guardaremos memória da comida, a não ser uma digestão demorada dos jaquinzinhos fritos.
Em compensação, o serviço é simpático e eficiente, os preços são puxados mas ainda não são os mais altos da cidade, o aspeto da garrafeira fechada atrás de umas portas de vidro promete e existe um enxame de TVDEs a rondar as proximidades, nunca se esperará mais de um minuto por transporte.
Admito que talvez seja preciso dominar melhor a carta. O “Mercado”, como quase tudo o que pode valer a pena em Portugal, é para se ir com quem conhece, porque em Portugal é sempre preciso conhecer as pessoas certas. Só estas conhecem bem o que vale a pena conhecer melhor, mesmo que não seja grande coisa.
Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.