Depois de quase três anos de avanços e recuos, e ultrapassados os vetos do Presidente da República e os chumbos do Tribunal Constitucional, o governo decidiu não avançar com a regulamentação da lei da morte medicamente assistida, aprovada em maio pela Assembleia da República, deixando o futuro da lei nas mãos do governo que resultar das eleições antecipadas de 10 de março.

Tribunal Constitucional chumba despenalização da eutanásia

Questionado sobre a matéria, o Ministério da Saúde disse ao Observador que “o processo de regulamentação da lei está em desenvolvimento e será parte integrante do dossier de transição”, pelo que o atual governo não vai regulamentar a lei nos próximos meses, deixando o processo nas mãos do próximo executivo.

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Já esta sexta-feira, o ministro da Saúde justificou a decisão de adiar a regulamentação da lei com a “complexidade” do processo. “A regulamentação não é isenta de complexidade nem da necessidade de audições e de debate”, explicou Manuel Pizarro, à Rádio Observador, à margem do Congresso da Ordem dos Médicos, que está a decorrer em Gaia. “Seria um erro regulamentar à pressa uma lei, que, sendo muito importante, é também muito delicada”, sublinhou o ministro da Saúde, confirmando que “o processo que vai ter mesmo de esperar pelo próximo ciclo político.”

A lei da morte medicamente assistida foi aprovada a 12 de maio na Assembleia da República e publicada em Diário da República no dia 25 do mesmo mês. A partir daí, o governo tinha 90 dias úteis para publicar o conjunto de regras e normas que permitissem a aplicação da lei — a regulamentação. Esse prazo terminou no início de outubro. Por essa altura, o Ministério da Saúde garantia ao Observador que se encontrava “a preparar a regulamentação em causa, estando a ser avaliadas a metodologia de trabalho e as soluções jurídicas a adotar”, num processo que envolvia “a colaboração entre o Ministério da Saúde e outras áreas governativas, designadamente a da Justiça”.

Agora, num contexto de crise política e com a publicação do decreto de dissolução da Assembleia da República já agendada para o início de dezembro, o governo decidiu não avançar com a regulamentação de uma lei que está longe de ser consensual, tanto na sociedade portuguesa como na Assembleia da República.

Governo deveria ter cumprido prazo de regulamentação, diz o Bloco de Esquerda

Ouvida pela Rádio Observador, a deputada do Bloco de Esquerda Isabel Pires diz que a opção do governo de fazer transitar o processo de regulamentação da lei para o próximo executivo é uma decisão que o partido “não consegue compreender”. “O governo devia ter cumprido os 90 dias da regulamentação. Esta decisão demonstra uma insensibilidade muito grande em relação a muitas pessoas e demonstra uma desvalorização do trabalho parlamentar que foi feito ao longo dos anos, inclusive pelo próprio PS”, diz a deputada, que é a responsável pelo Bloco de Esquerda na Comissão Parlamentar de Saúde da Assembleia da República

Isabel Pires lembra que “em outubro, o ministro da Saúde disse que estava a trabalhar para que a regulamentação saísse” e faz um apelo ao governo para que “regulamente a lei o mais depressa possível”.

Processo prolonga-se há quase três anos

Recorde-se que primeiro projeto de lei para despenalizar a morte medicamente assistida foi aprovado no final de janeiro de 2021. No mês seguinte, o Presidente da República enviou a Lei para o Tribunal Constitucional, que em março, a declarou inconstitucional. De seguida, Marcelo Rebelo de Sousa vetou a lei, devolvendo-a à Assembleia da República.

Em novembro de 2021, o Parlamento fez alterações ao diploma e voltou a aprovar a lei, mas o Presidente da República voltou a vetá-la apontando “o que parecem ser contradições no diploma quanto a uma das causas do recurso à morte medicamente assistida”.

Perante um terceiro decreto-lei, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a recorrer aos juízes do Palácio Ratton, em janeiro de 2023, sendo que o Tribunal Constitucional voltou a decidir-se pela inscontitucionalidade da lei devido à falta de clareza da expressão “sofrimento de grande intensidade”.

O Parlamento voltou a aprovar a lei, no final de março deste ano, mas Marcelo manteve as dúvidas quanto ao diploma e voltou a vetar a lei em abril. Em maio, a Assembleia da República reconfirmou a lei sem alterações, na quinta votação sobre o tema em pouco mais de dois anos, o que obrigou o Presidente da República a promulgar a morte medicamente assistida.