Em junho de 2022, o Governo anunciou a criação de um grupo de trabalho para uniformizar o modelo de avaliação de crianças e jovens em perigo, uma decisão tomada poucos dias depois da morte de Jéssica Biscaia, criança de três anos que morreu, em Setúbal, vítima de múltiplas agressões. O referido grupo só foi criado em novembro desse ano, as conclusões foram entregues em junho de 2023, mas as mesmas nunca foram apresentadas, nem enviadas ao Observador, apesar das múltiplas insistências feitas ao longo dos últimos meses junto do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para que o relatório fosse disponibilizado.

O documento entregue pelo grupo de trabalho aos diferentes ministérios responsáveis — Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e gabinete da Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares — nunca foi divulgado, mas é utilizado como referência noutros contextos, como na aprovação para a Estratégia Integrada de Segurança Urbana (EISU), de agosto do ano passado, ou na criação de mais um grupo de trabalho para introduzir alterações à Lei Tutelar Educativa, já no final de outubro.

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A Estratégia Integrada de Segurança Urbana, aprovada em Conselho de Ministros e com foco na segurança de pessoas em situação mais vulnerável, de espaços escolares, desportivos ou de diversão noturna, já fazia referência ao despacho de 2022. No contexto da proteção de crianças e jovens, refere o documento da EISU, além de ser dada continuidade a ações de sensibilização nas escolas para o bullying e para o ciberbullying, outros dos objetivos é aplicar “em contexto escolar a ficha de avaliação de perigo aprovada no âmbito do despacho 12853/2022 [que determinou a criação do grupo de trabalho], em particular a situações que se interligam com as áreas de competência das Forças de Segurança”.

Esta referência a uma ficha de avaliação de perigo já consta, de facto, no despacho publicado em Diário da República em novembro de 2022. Aliás, refere a tutela que o relatório que até hoje não foi tornado público deve, depois de identificar os principais fatores de perigo associados às crianças e jovens, criar “uma concreta proposta de ficha de avaliação de perigo a que se encontrem expostos”, para que seja então possível encontrar um modelo uniforme de proteção entre as várias entidades. Na parte da segurança, esta ficha de avaliação de perigo foi já integrada, apesar de não ser possível perceber em que consiste.

Governo cria grupo de trabalho para alterar Lei Tutelar Educativa, mas conclusões de anterior grupo ainda não são conhecidas

Na mesma linha segue a criação do grupo de trabalho para alterar a Lei Tutelar Educativa. Tal como o Observador já tinha indicado no ano passado, este grupo terá em conta as recomendações de três relatórios já entregues por três grupos de trabalho anteriores. Aqui, apenas dois relatórios são conhecidos: o da Comissão de Análise Integrada da Delinquência e da Criminalidade Violenta, de fevereiro do ano passado, e o da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos Centros Educativos. Falta conhecer um dos documentos, que é precisamente o relatório que o Observador tem tentado obter, mas sempre sem sucesso.

Além dos e-mails semanais que o Observador tem enviado, desde setembro de 2023, para o ministério liderado por Ana Mendes Godinho, foi pedido à Coordenação Nacional da Garantia para a Infância o referido relatório, uma vez que a presidente desta entidade pública, Sónia Almeida, coordenou o grupo de trabalho em causa. No entanto, as respostas foram remetidas, mais uma vez, para a tutela, devendo o pedido “ser dirigido às áreas governativas responsáveis”. Já a última resposta do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, dada esta quinta-feira, não foi diferente das raras respostas dadas ao longo dos últimos meses: “Voltámos a solicitar informação para a podermos informar.” Outras das (poucas) respostas tinha sido dada no final de setembro do ano passado, quando foi dito que os ministérios ainda estavam “a analisar o relatório e as propostas de reforço e aperfeiçoamento do sistema de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo que foram apresentadas”.

Propostas podem incluir alterações legislativas

No despacho que deu origem a este grupo de trabalho, publicado a 8 de novembro de 2022, a tutela reconhece que o atual modelo de intervenção em contexto de proteção de crianças e jovens é complexo, sobretudo em casos mais graves e mais urgentes, em que é necessário “garantir igualmente uma intervenção expedita”. Foi, por isso, pedido ao grupo de trabalho que fosse feita a “identificação dos principais fatores de perigo associados às fragilidades/vulnerabilidades das crianças e jovens” e a “planificação de um modelo uniforme, visando a aplicação articulada pelas diversas entidades” e, sobretudo, a formulação de propostas, que podem incluir alterações legislativas.

O caso de Jéssica Biscaia despertou as atenções para a elevada complexidade do modelo de proteção atual. A criança era acompanhada por uma equipa de técnicos sociais do tribunal, tendo em conta que o processo estava já na Justiça e não na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Na altura, colocou-se a questão da articulação com a educação — a criança não estava na escola –, com a saúde e com as forças policiais, uma vez que Jéssica morreu, vítima de múltiplas pancadas, esteve em casa dos agressores, pelo menos, três vezes, e nunca nenhuma entidade percebeu o que estava a acontecer.

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Apesar de o processo desta criança estar já no tribunal, a sinalização na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens foi feita no dia em que nasceu. Nessa altura, em 2019, o processo de acompanhamento pela equipa de assistentes sociais começou a ser feito, porque todos os seus cinco irmãos mais velhos já tinham sido sinalizados em algum momento das suas vidas. E já nenhum deles vivia com a mãe.

No entanto, como confirmou em 2022 ao Observador a presidente da CPCJ de Setúbal, Isabel Braz, o acompanhamento desta comissão só durou um ano. A partir de 2020, o caso passou para as mãos do Ministério Público, porque os pais de Jéssica não deram autorização para que o acompanhamento da CPCJ continuasse. Aliás, esta é uma das barreiras burocráticas e legais em relação ao acompanhamento de crianças e jovens por parte destas comissões, pois só podem intervir se tiverem autorização dos pais ou representantes legais.