Numa pesquisa por informações sobre Adam Sandler surge, entre os resultados, uma pergunta: “O Adam Sandler é português?”. A resposta óbvia é não, mas a pergunta não deixa de conter uma ironia muito própria do que tem sido a carreira do homem que a partir de Brooklyn, em Nova Iorque, se tornou num dos rostos principais da comédia mainstream no cinema, em filmes como A Minha Namorada Tem Amnésia (2004) ou Miúdos e Graúdos (2010). Mas também de filmes que subverteram o género ou que foram à procura de algo mais difícil de catalogar, para criar histórias de amor (Punch Drunk Love, 2002) ou família (The Meyerowitz Stories, 2017). No meio de tudo isto, e naquela que é já uma longa vida na indústria de Hollywood, vale a pena relembrar dois momentos: o filme Click, que está quase sempre na ponta da língua quando se fala de Adam Sandler, e Uncut Gems, de 2019, dos irmãos Ben e Josh Safdie, filme que se tornou de culto, sobretudo, porque o ator não foi nomeado aos Óscares no dia seguinte, como muitos anunciavam que iria acontecer. A vida no cinema de Sandler tem dado para rir, com perguntas e observações asburdas, mas esta sua nova fase é para levar muito a sério.
O tempo passa, muito se especulou sobre qual seria o próximo grande papel dramático do ator americano e eis que a Netflix, plataforma de streaming com que Sandler tem tido uma relação milionária — Hustle, Leo ou Mistério em Paris — decidiu puxá-lo para uma proposta menos óbvia. Não no género, nem sequer na história, mas, por um lado, no tipo de personagem e, depois, no grupo que acabou escolhido para Spaceman (O Astronauta na versão portuguesa), com honras de estreia na 74.ª edição do Festival de Berlim.
Realizado por Johan Renck, obreiro da muito bem criticada série Chernobyl (HBO), escrito por Colby Day e baseado no livro Spaceman of Bohemia de Jaroslav Kalfar, Spaceman fala sobre um astronauta checo, Jakub Prochazka (Adam Sandler), que tem a missão de estudar uma nuvem misteriosa em Júpiter. Deixa a mulher grávida em Terra (Carey Mulligan, nomeada este ano aos Óscares pelo filme Maestro) para encontrar uma misteriosa criatura alienígena em forma de aranha (com a voz de Paul Dano), que lhe entra pela nave disposto a ajudá-lo. Não na sua missão, mas em algo muito mais humano: fazer a terapia necessária para entender porque é que tem andado a fugir cada vez mais da sua relação. O mundo cósmico como remédio para o coração. Então se vier com a banda sonora do britânico Max Richter, que também se tem dedicado ao cinema e às séries (Leftovers, Ad Astra ou Prometheus), ainda melhor.
[trailer oficial do filme “Spaceman”, da Netflix:]
Assim que se termina Spaceman, e apesar do minucioso trabalho de fotografia que nos transporta para a solidão de um astronauta enclausurado no vazio, fica a dúvida sobre se este terreno a que damos o nome de universo não está cansado de servir de mote para as nossas crises conjugais e existenciais. Em quase duas horas, procuramos muito pelo lado mais original, mas não é óbvio. Adam Sandler, que pela primeira vez visitou a Berlinale, tem poucos problemas com essa dúvida. Na conferência de imprensa de apresentação do filme, que trouxe a equipa de Spaceman em peso, o ator, que se queixou do jet lag, mostrou não ter grande cabeça para responder aos jornalistas. As suas piadas e a boa disposição asseguraram que não se tratava de arrogância. Notava-se, isso sim, que não estava no seu meio ambiente, ou então é só mesmo feitio, ainda que a imprensa, mais uma vez, tenha mostrado que está do seu lado nesta nova fase.
A opção foi desvendar mais sobre os bastidores da rodagem desta produção da Netflix. Feito em tempos de pandemia de Covid-19, com reuniões por Zoom, Adam Sandler, para grande desilusão, não esteve mesmo no espaço. Através do uso de uma parafernália de cabos, o ator andou suspenso a maior parte do tempo para ilustrar o dia a dia de um astronauta. “O meu corpo não é flexível o suficiente. Quando dizia à equipa que me estava a doer enquanto estava preso pelos fios, não acreditavam. O Johan dizia-me que não sabia flutuar”, disse, mostrando que o realizador teve, ele próprio, de se equipar para ensinar ao ator a forma certa de o fazer. Tal como no filme, em que a criatura invade a mente de Jakub para procurar as razões de ser um homem que, apesar da missão e do sucesso, vive alienado da mulher, Adam Sandler contou com Paul Dano, em alta rodagem depois de The Fabelmans, a fazer de Hianus. “Fomos a um lugar profundo juntos, ele tentou que eu percebesse o sofrimento da minha personagem. Tivemos ensaios e depois conversava com uma bola de ténis ou um amigo do Johan, que se vestia como a criatura. É um filme sobre estar só, a bola de ténis ajudou-me a entrar nesse universo”, garantiu.
Flutuar é talvez o verbo certo a usar para explicar o que se passou na conferência de imprensa. A comunicação social presente puxou pelos temas de Spaceman, da solidão à experiência em relações amorosas que ajudassem a trabalhar o papel. Mas o destapar do véu ficou sobretudo entregue ao realizador, sueco pouco dado a referências cinematográficas. “Sou mais um homem dos livros e não tanto do cinema. Prefiro procurar a história original. Fizemos o Spaceman durante a pandemia. Todos os sonhos, pesadelos e experiências estranhas que tivemos durante a Covid-19 foram transportados para o nosso set. Porque este filme também fala de desconexão.”
Na tarde desta quarta-feira em Berlim, o ambiente tinha sotaque de espírito de equipa, resposta tradicional na altura das apresentações. Todos, do compositor Max Ritcher ao realizador, falaram da experiência coletiva de fazer Spaceman, quase como um suspiro de alívio que afasta tempos pandémicos ou greves de guionistas nos Estados Unidos. É também verdade que estamos na altura dos grandes prémios da indústria e que, dos atores presentes, só Carey Mulligan é que tem motivos para sorrir. “Sim, neste momento só se pensa nas cerimónias, é um trabalho a tempo inteiro. Mas este ano também é a oportunidade de partilhar o espaço com guionistas, realizadores e atores”, como a que a britânica está a ter na Alemanha. Já Adam Sandler não sabe se vai voltar a vestir a pele de protagonista num drama. Suspeita-se que sim, mas não quis desatar o nó. “Pode ser que o Johan Renck nos queira convidar outra vez.” O realizador acenou que não.
Se o convite não vem, fica uma ficção científica que tenta explorar a razão que leva a humanidade a ter tanta dificuldade em aproveitar as coisas boas da vida, acabando sós. Já Adam Sandler, bem que queria ficar mais tempo na nave. “Só consigo ter oito minutos da minha vida sozinho, deviam experimentar ser astronautas.” Mais uma piada para quebrar o gelo, agradece-se. Ficam os cabos, as criaturas do espaço, a solidão e uma rodagem musicada por Celine Dion. Num próximo festival, seria bom que Adam Sandler mostrasse mais preparação para responder a perguntas. Será preciso? Talvez não, porque se se mexer numa figura que imprimiu uma marca na comédia, o resultado pode não ser bom.
Mas esta tem de ficar em ata. O que é que o filme A Minha Namorada Tem Amnésia, sobre memória, que passa muitas vezes no Brasil, mesmo já tendo 20 anos, e Click, sobre a passagem do tempo, têm a ver com Spaceman? O ator, meio atrapalhado, elogiou a pergunta e fez um fixe. Já o aracnídeo do filme, com milhares e milhares de anos de existência e muita quilometragem nas várias galáxias, foi desenhado para ser o mais real possível, para ser “o mais querido possível”, porque — imagine-se — Adam Sandler precisa “que as pessoas sejam queridas com ele”, partilhou Paul Dano. E não de perguntas profundas ou chatas, está visto.