É com um desastre de comboio que abre “Os Fabelmans”, o novo filme de Steven Spielberg, que o realizador escreveu a meias com o dramaturgo e argumentista Tony Kushner. Mas não é um desastre de comboio qualquer. É o de “O Maior Espectáculo do Mundo”, de Cecil B. DeMille, que impressiona de tal forma o pequeno Sammy Fabelman (Mateo Zoryan), um menino judeu cujos pais, Mitzi (Michelle Williams) e Burt (Paul Dano), o levaram ao cinema pela primeira vez, que ao receber um comboio elétrico de presente pelo Hanukkah, vai de imediato recriar com ele o desastre da superprodução de DeMille e filmá-lo com a câmara de 8mm do pai. Daí a fazer filmezinhos com as três irmãs, é um pulo.

[Veja o “trailer” de “Os Fabelmans”:]

A partir daí, o cinema vai ser a razão de ser da vida de Sammy. Leia-se: de Steven Spielberg, porque “Os Fabelmans” é um filme fortemente autobiográfico, no qual o realizador recria a sua infância e juventude, confronta os problemas que levaram os pais a divorciar-se e a família a desfazer-se, e dramatiza a forma como isso o afetou. “E.T. — O Extraterrestre” (1982) começou por ser um filme sobre a separação dos pais do autor de “Tubarão”, as culpas que ele atirava ao pai e a sua relação muito especial com a mãe. Quarenta anos mais tarde, Spielberg consegue enfim dar forma cinematográfica às suas recordações familiares, as mais felizes como as mais dolorosas, e apresentar explicitamente aquilo a que tinha apenas aludido ou deixado sugerido em vários dos seus filmes anteriores. (Originalmente, “Os Fabelmans” esteve para se chamar “I’ll Be Home” e ser escrito por Regina Spielberg, uma das irmãs do cineasta). 

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[Veja uma entrevista com Steven Spielberg e o ator Gabriel LaBelle:]

“Os Fabelmans” começa em 1952, em Nova Jérsia, no confortável bairro de classe média onde Sammy vive com os pais e as três irmãs (são a única família judia da vizinhança). Bennie (Seth Rogen) é o maior amigo do pai, engenheiro eletrotécnico como ele, e tão lá de casa que todos o tratam por “tio”. A indústria dos computadores está em pleno desenvolvimento nos EUA e o pai Burt, dinâmico e inteligente, arranja um novo e mais bem pago emprego na I.B.M., o que implica a mudança da família para Phoenix, no Arizona, e mais tarde, para a Califórnia. Onde se irá consumar a separação de Mitzi e Burt, ficando Sammy, então já adolescente (e interpretado por Gabriel LaBelle), a viver com o pai e as irmãs com a mãe.

[Veja uma entrevista com Michelle Williams e Paul Dano:]

Durante esta jornada que ao longo de vários anos leva os Fabelmans da Costa Leste para a Costa Oeste dos EUA, Sammy vai aprofundando a sua paixão pelo cinema e aperfeiçoando a sua técnica de filmagem. No Arizona, recruta os companheiros de escutismo para rodar pequenos “westerns” e filmes de guerra em 16 mm, e começa a descobrir como fazer efeitos especiais artesanais para os melhorar. E na Califórnia, recorre aos filmes para se tentar integrar num liceu onde o facto de ser um raro aluno judeu e não ter jeito para o desporto lhe traz problemas com alguns colegas mais intolerantes e agressivos (mas também uma namorada tão beata como dada, e determinada a convertê-lo ao catolicismo), e ser aceite socialmente.

“Os Fabelmans” deve ser o filme mais solto e folgado de Steven Spielberg em termos de argumento e enredo, organizado como uma sucessão de peripécias, anedotas e acontecimentos familiares, pessoais e íntimos, quase sempre indissociáveis do cinema a que Sammy se entregou de alma e coração. E Steven Spielberg mostra que o cinema não é só uma fonte de prazer, euforia, evasão e encantamento. Como ele próprio descobre, o cinema pode trazer também dor, angústia e deceção (o segredo da mãe que Sammy descobre ao montar os filmes de campismo da família, que acabará por a desfazer e quase levará o rapaz a desistir de fazer filmes), e ter um efeito totalmente oposto ao desejado (a reação imprevista do colega a que Sammy pretende agradar no “beach movie” do liceu, por se ter visto representado como não pensava ser).

[Veja aspetos da rodagem do filme:]

Se a história familiar de “Os Fabelmans” tem um final pouco feliz, o mesmo não acontece com a jornada artística que a acompanha. Sammy, que começou o filme com sete anos a rodar em casa um desastre de um comboio elétrico com uma câmara de 8mm, acaba, com 18 anos, a ver as portas de Hollywood abrirem-se-lhe, quando lhe é proposto trabalhar em televisão para um grande estúdio, onde tem um encontro inesquecível com um colosso do cinema. Nada mais, nada menos que John Ford (não vão adivinhar quem o interpreta), que lhe concede, entre resmungos e palavrões, cinco minutos de atenção, e o manda embora com um precioso conselho que Sammy seguirá a partir daí.

[Veja uma cena do filme:]

“Os Fabelmans” tem as suas fraquezas. As sequências da visita do estereotipado  tio Boris (Judd Hirsch) são demasiado explicativas e Spielberg usa a personagem para sublinhar a traço grosso o que podia bem ter ficado sugerido; a história perde por vezes o rumo e a fita não teria ficado pior com 20 minutos a menos; e a banda sonora de John Williams está muito longe de ser uma das melhores do compositor. Mas são reparos de menor para um filme que é magnificamente balizado por Cecil B. DeMille e por John Ford, e em que Steven Spielberg transforma delicada matéria autobiográfica em entretenimento que nos absorve e emoção que nos comove.