“O nosso casamento estava assente na insegurança”, disse Leonard Bernstein certa vez numa entrevista. “Há um preço a pagar por se estar na órbita do meu irmão”, diz a irmã de Bernstein a certa altura de Maestro, de Bradley Cooper, que também interpreta o lendário e carismático maestro, músico, compositor de bailados, óperas e musicais da Broadway, divulgador e pedagogo, vencedor de vários Grammys e Emmys, e detentor de álbuns de ouro e de platina. Mas o filme está menos interessado em todo este currículo do que no Bernstein íntimo, nas suas contradições sexuais, sentimentais e conjugais, referidas ao casamento com a atriz Felicia Montealegre (Carey Mulligan), que lhe aturou até morrer a intensa promiscuidade, que sabia das relações bissexuais e que viveu os ocasionais vexames sociais e domésticos, mantendo a família sempre unida.

[Veja o “trailer” de “Maestro”:]

Em duas horas, e recorrendo a muita estenografia biográfica (por vezes, básica demais), Bradley Cooper mostra como o complicado, insólito e espinhoso casamento de décadas entre a força da natureza musical, a figura social hiperativa, o narciso extrovertido e o atleta do sexo que era Leonard Bernstein, e a compreensiva, paciente e sofredora Felicia Montealegre, conseguiu sobreviver, enraizado como estava num profundíssimo amor mútuo, entre 1951 e 1978, ano da morte desta, com cancro. E de tal forma Cooper o faz, que Maestro deveria ter-se intitulado, com mais propriedade, O Maestro e a sua Mulher, ou Leonard e Felicia. Ou talvez mesmo A Mulher do Maestro, já que Felicia acaba por ser o ponto cardeal da fita: não só é dela o plano que a encerra, como também Carey Mulligan surge em primeiro lugar na ficha técnica.

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[Veja uma entrevista com Bradley Cooper:]

Do ponto de vista formal “Maestro” não podia estar mais longe do ramerrão habitual dos filmes biográficos, em que o realizador é um mero e apagado amanuense da personalidade cuja vida está a contar. Ecoando visualmente a vitalidade, a exuberância e a inquietação de Leonard Bernstein em tudo o que fazia, da atividade musical e cultural à circulação social e à intimidade amorosa e sexual, a tensão existente entre as suas imagens pública e privada, e os vários climas e guinadas emocionais e psicológicas, “Maestro” é realizado por Bradley Cooper como o cruzamento entre um filme de ação, um musical e um melodrama conjugal.

[Veja uma entrevista com Carey Mulligan:]

A câmara tanto anda num frenesim atrás de Bernstein no interior do Carnegie Hall, ou do casal na rua, num parque ou num palco onde Jerome Robbins está a ensaiar um bailado (o filme está povoado de nomes famosos da música clássica, da Broadway e de Hollywood), como estaca para observar clinicamente Leonard e Felicia numa discussão angustiada no seu apartamento de Manhattan, enquanto a parada do Dia de Ação de Graças desfila na rua; preto e branco e cor convivem, a proporção da tela varia e a textura fotográfica muda conforme a época em que a ação se passa. No gesto cinematográfico como no discurso narrativo, a fita é toda ela um correlativo da personalidade estuante de Leonard Bernstein, e da muito pouco fiel mas sempre verdadeira relação entre ele e a mulher.

[Veja-se o verdadeiro casal Bernstein:]

Bradley Cooper metamorfoseia-se em Leonard Bernstein, da voz e dos tiques e posturas, até à gestualidade quando dirige uma orquestra (veja-se a sequência do concerto da “2ª Sinfonia” de Mahler, na Catedral de Ely, em Inglaterra, em 1973, dir-se-ia Bernstein em tudo, do aspeto físico ao modo efusivo e dramático de reger, com uma entrega tal que o fazia desfazer-se em suor), ao ponto de haver sequências de Maestro que julgamos serem de arquivo, quando na verdade é o ator transmutado em Bernstein que estamos a ver, e não o próprio. Como Felicia, Carey Mulligan é perfeita de subtileza expressiva, quer na paixão, na admiração e no enlevo, quer no estoicismo, no incómodo e na decepção perante o marido. É em boa parte mérito seu que nunca deixemos de acreditar na genuinidade do amor que manteve Leonard e Felicia juntos até à morte dela, e o deixou depois devastado.

[Veja uma sequência do filme:]

A escolha de Bradley Cooper de centrar Maestro na vida pessoal, conjugal e familiar de Leonard Bernstein (que sempre procurou escamotear aos filhos a sua bissexualidade), e no papel fundamental que Felicia Montealegre desempenhou nela, significa, no entanto, um desinvestimento na dimensão artística e cultural do criador dos inesquecíveis “Concertos para Jovens”, que a RTP transmitiu ao tempo. O Bernstein músico sobredotado e compositor que harmonizou a música clássica das salas de concerto e a música popular dos teatros da Broadway, o primeiro grande maestro — e de projeção mundial — que os EUA tiveram, o divulgador eloquente e entusiasmante, o homem que tanto falava de Mahler e de Bach como dos Beatles, e os explicava com brilho e clareza, esse surge apenas de raspão em Maestro, e para o conhecermos melhor temos que ir em busca dele nos discos, na internet e nas biografias. Abundante no Bernstein íntimo, o filme é escasso no Bernstein artista. E eles são indissociáveis porque se alimentavam um ao outro.

[Veja Leonard Bernstein falar sobre os Beatles:]

Uma última nota para o tabaco em Maestro. Há muito tempo que não se via um filme onde se fuma tanto. Ainda bem que Bradley Cooper não fez censura retroativa de puritanismo sanitário ao tabagismo habitual, omnipresente e corriqueiro do passado. A fita teria perdido em verdade do quotidiano e Leonard Bernstein teria sido absurda e estupidamente privado de um dos seus três apêndices favoritos, além da batuta e das teclas do piano: o cigarro.