O bairro da Lapa, no centro do Porto, é um lugar de contrastes, que ficam especialmente evidentes à porta da sede da Associação de Moradores do bairro: de um lado, um histórico bairro de habitação acessível, construído na década de 70, logo depois do 25 de Abril, no âmbito do programa SAAL — o programa de construção para dar resposta ao forte problema das barracas em Portugal, que permitiu a edificação de vários bairros em terrenos públicos, geridos por cooperativas e associações de moradores. Do outro lado, um imponente hotel de quatro estrelas que foi construído em 2021 num investimento que envolveu 160 vistos gold e que está agora em obras de ampliação.
A cabeça-de-lista do Bloco de Esquerda às eleições europeias, Catarina Martins, escolheu este bairro no Porto para iniciar um dia de campanha dedicado às questões da habitação. A candidata bloquista quis chamar a atenção para este contraste: o bairro SAAL, composto por 74 casas, devia ter mais de 200, mas a segunda fase das obras da habitação pública, que deveria ter resultado na edificação de mais uma centena de casas, nunca avançou; em contrapartida, o hotel financiado pelos investidores que receberam vistos gold avançou a uma velocidade impressionante, ocupando terrenos que eram públicos.
Carlos Ferreira, o presidente da associação de moradores, recebeu esta manhã Catarina Martins na sede da associação para lhe explicar que os moradores nunca souberam exatamente o que aconteceu para que a segunda fase da construção de habitação pública não tenha avançado. “O projeto foi começado, fizeram as fundações, só que depois foi abandonado”, diz o responsável. Hoje, a zona que era destinada à habitação é um parque de estacionamento.
A contrapartida pela construção do hotel é a realização de obras para melhorar os acessos ao bairro e a construção de um parque infantil. No entanto, os moradores prefeririam outra opção. “O ideal seria fazer a segunda fase das casas, porque a habitação aqui no Porto está muito má”, explica o responsável pela associação que tem um pequeno café no piso de baixo — café ironicamente usado pelos trabalhadores das obras em curso durante a hora de almoço.
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Os moradores do bairro da Lapa pagam apenas uma taxa de manutenção das casas, que fica abaixo de 100 euros mensais mesmo para as casas maiores, os T4. As casas do bairro, construído no programa SAAL, já estão mais que pagas, explica o responsável da associação, lembrando que as casas foram pagas em 25 anos. A associação encontra-se, por esta altura, a realizar obras de remodelação nas casas no valor de 500 mil euros — totalmente pagos pelos moradores, com uma única benesse dada pela câmara, a isenção de IMI durante cinco anos para permitir aos moradores que constituam um fundo para as obras. Umas obras que Carlos Ferreira classifica como “obras de Santa Engrácia”, que já duram há quatro anos e ainda vão continuar.
Durante a manhã desta terça-feira, Catarina Martins visitou o bairro da Lapa e a sede da associação de moradores para, aos jornalistas, lembrar que Portugal não pode ser “o resort da Europa”.
Em conversa com os responsáveis da associação, a candidata bloquista lamentou que nunca tenha surgido habitação pública naqueles terrenos. “Quando o projeto SAAL foi pensado, foi pensado para as duas fases. Os terrenos foram sempre públicos. Mas nunca surgiu aqui habitação pública. Nem SAAL nem outra. As coisas mudaram no país, mas a verdade é que estes terrenos são todos públicos. Sempre houve o projeto de fazer mais habitação pública alem do projeto SAAL”, lembrou a bloquista. Mas os terrenos foram “entregues para um projeto para construir hotéis”.
“Estamos no centro do Porto, numa zona em que há vários terrenos públicos que foram pensados para habitação, mas na verdade só foi construída uma pequena parte da habitação projetada, menos de 100 fogos já há quase 50 anos. Depois, nunca houve investimento”, explicou Catarina Martins aos jornalistas. “Eis senão quando a autarquia decide que os terrenos que são públicos podem ser usados, não para a habitação, que é tão necessária no Porto, é tão necessária no país, mas para um hotel. Um gigantesco hotel que, por sinal, é um hotel feito de vistos gold. São 160 vistos gold num hotel gigantesco que cresce onde deviam existir casas. Bem, são todos os problemas que podem imaginar que estão juntos.”
“Em primeiro lugar, os vistos gold — que são as únicas portas escancaradas à imigração. O Bloco tem dito desde o início que os vistos gold não podem existir. Aliás, há problemas associados a corrupção, a branqueamento de capitais. Os vistos gold não deviam existir em nenhum país da Europa, essa é a nossa proposta”, destacou Catarina Martins.
Além disso, a candidata bloquista aproveitou para lembrar que, ao contrário do que por vezes é dito, não há “falta de construção”. O problema é “o que se constrói”. “Estamos no centro do Porto, em terrenos públicos que deviam ser para habitação, e que foram transformados em hotel, deixando as pessoas sem casa para morar”, insistiu.
“Temos de tratar bem toda a gente que vive em Portugal. A habitação é um problema gigantesco. Portugal gosta — e bem — de acolher quem nos visita. Recebemos bem, temos orgulho nisso, gostamos de o fazer. Mas Portugal não é o resort da Europa”, defendeu Catarina Martins. “Portugal é um país que tem de ter respostas de habitação para quem aqui vive e aqui trabalha. Nós, no centro do Porto, estamos a ver exatamente o exemplo do pior que se tem feito. Onde devia nascer habitação nascem hotéis. Hotéis, hotéis, hotéis. Hotéis de luxo, vistos gold, deixando as pessoas para trás. A nossa proposta é que a habitação seja uma prioridade.”
Falta de alojamento estudantil compromete direito à habitação
À tarde, Catarina Martins manteve-se no tema da habitação e visitou uma residência de estudantes recentemente inaugurada pela Federação Académica do Porto (FAP), para dar o exemplo de um projeto de sucesso — mas também para exigir que se faça mais para garantir o direito à habitação dos estudantes deslocados, intrinsecamente ligado ao direito à educação.
Curiosamente, Catarina Martins visitou um projeto que foi inaugurado em setembro por Ana Gabriela Cabilhas, anterior presidente da FAP que atualmente é deputada do PSD — e é até a mandatária para a juventude da candidatura de Sebastião Bugalho às europeias. A candidata bloquista, porém, rejeitou qualquer incómodo com esse facto: “Temos muito prazer em falar dos bons exemplos, venham eles com os incentivos que vierem. Isso para nós nunca foi problema e nunca será.”
“Uma coisa eu sei: não podemos é ter uma política em que os bons exemplos são uma minoria”, acrescentou, em declarações aos jornalistas depois de visitar a residência na baixa do Porto, que classificou como um “extraordinário trabalho” da parte da FAP.
“Não há nenhuma geração em Portugal que não perceba como a habitação é fundamental. Seja os estudantes, como aqueles com quem estamos agora, e estes estudantes precisam de ter um sítio, um quarto onde estudar. Quem não tem dinheiro para pagar um quarto na universidade que escolheu, não pode seguir o seu sonho de vida. O direito ao alojamento estudantil é também um direito para que se escolha o que se quer estudar e poder fazer o que se sonhou na sua vida”, disse a candidata bloquista.
“Vemos também como tantas famílias não conseguem ter uma casa. Vemos uma lei de rendas que faz com que as pessoas mais velhas estejam com o coração nas mãos, sem saber se contam com a sua casa ou se podem ser despejadas. Vemos mais jovens que nunca mais conseguem sair de casa dos pais, ou que têm de habitar como eternos estudantes, partilhando casa e não tendo a sua autonomia, não podendo constituir o seu projeto de vida”, acrescentou ainda. “Para nós, estas europeias são sobre isto. São sobre o direito da habitação.”
Quanto a propostas concretas, Catarina Martins destacou que o Bloco defende “que o direito à habitação seja um direito fundamental na UE”, mas disse que pretende mais do que isso: “Que os orçamentos dos países possam investir na habitação. E queremos também que a política de juros do BCE tenha escrutínio democrático para que não se permita políticas como as que aconteceram de duplicar os juros no momento mais difícil da vida das famílias.”
Para Catarina Martins, qualquer universidade pública deve ter “instalações públicas para instalar os seus estudantes deslocados”.
“Só assim é que toda a gente, independentemente do rendimento da família ou do sítio onde mora, tem acesso a essa universidade. Portanto, transformar o investimento em residências num investimento normal das universidades públicas é fundamental. Quem entra na universidade tem de ter acesso também a alojamento. Para nós deve ser a regra”, defendeu.
“Fomos achando que o ensino devia ser mais democrático. Um ensino mais democrático que chega a mais pessoas precisa também de garantir essa função essencial de alojamento dos estudantes deslocados. Isso só se consegue com investimento em residências públicas”, acrescentou ainda.